Produção Corporativamente Enxuta

Acabara de recorrer ao departamento imediato da organização, após as diversas resoluções burocráticas cotidianas, me dei conta que não tinha papel higiênico. Cômico. Havia um espécime de papel toalha, da pior qualidade existente, desses que deve possuir a mais ínfima gramatura. Por alguns instantes senti vontade de rir ... Destoar àquela estrondosa gargalhada, que nos faz perder o ritmo, cadenciando lágrimas Allegro ma non troppo¹.

Assentei-me sobre a latrina e pus-me em avaliar melhor aquele compósito celular que realizaria a limpeza de meu orifício intestinal. Apalpei-o lentamente. Amassei-o reduzindo na menor forma geométrica concebível com intuito de amaciar a celulose e promover o mínimo coeficiente de atrito anal. Desdobrei-o e resvalei levemente sobre os dedos sentindo pequenas arestas aguçadas e cortantes. Temi pelo que pudesse ocorrer durante a sessão de higienização corporal.

Naquele momento de intensa expiração, discorri sobre minha infância e lembrei de um Jingle² que cantarolávamos atônitos, a fim de depravarmos toda repressão lingüística que nossos pais e mestres nos impunha. O coro era altivo e destoante:

- Jingobel. Jingobel. Acabou papel .

- Não faz mal, não faz mal. Limpe com jornal.

- O jornal ta caro, caro pra chuchu.

- O que é que faço, pra limpar . . .?

Não entendíamos bem sobre os movimentos revolucionários da época, sabíamos apenas que alguns tantos saiam as ruas para protestar contra militares e de alguma forma queríamos participar daquela baderna . . . Sarcástico. Porém, tanto eles quanto nós, encerrávamos nossa indignação varonil sob pena de castigos e censuras, puxões de orelhas e safanões, trancos e solavancos. Desbunde total.

Não se trata mais de uma cantiga infantil, vivencio na pele a simples restrição em poder realizar minhas necessidades fisiológicas de forma confortável.

A globalização industrial insere no mercado ferramentas teóricas que ensinam a desenvolver uma metodologia de produção econômica e teve a grande idéia de racionalizar papel higiênico. Lean Manufacturing, detestei. Faço meu melhor papel e recebo em troca um de terceira categoria. Para implantar um modelo produtivo com uma nova concepção em gestão de manufatura tenho que sacrificar meu inevitável comportamento esfincteriano. Maldade. Gestão indigesta parte três. Há quem prefira economizar na refeição oferecida a ter seu reto esgarçado. Não me atrevo em opinar pois sou adepto as diversas guloseimas fornecidas pouco antes da siesta³ brasileña. Temo que possam contratar um nutricionista mongiano e o cardápio comece a vir servido de alpiste com aveia. Arroz com grão-de-bico. Que fim terá os cagões de plantidão? Extinção dos borradores de cueca! Melhor não pensar alto, vai que o patrão escuta. . . Tô ferrado!

Volto ao meu dilema. Limpar ou não limpar? Eis a questão. Respiro fundo e decido encarar aquele ralador de coco. Separo minhas nádegas e inicio uma delicada secção de esfacelamento. Tento dar ritmo aos movimentos, sinto arritmia e arrependimento profundo. Calo. Frio. Calafrio. Suo frio. Asseio maldito. Anseio que isto termine logo. Percebo que vou perdendo lubrificação intestinal, começo a me sentir arranhado. Flagelo. O negócio torna-se ríspido como pedra de amolar facão em dia de abate em curtume. Grosa. Lima. Raspa. Em fim, desinfectado. Ergo as calças, abotôo o cinto, puxo o cordão de descarga e vou direto ao lavatório. Lavo minhas mãos e passo água fria na nuca, os batimentos desaceleram aos poucos, entra um colega e dá boa tarde. Olho-me no espelho e sorrio como se nada tivesse acontecido, preciso concentrar-me.

Tenho metas a cumprir. Respiro fundo. Levanto a cabeça e tomo meu caminho rumo a fábrica. Aceno aos companheiros e inicio uma longa caminhada robotizada nos corredores fabris, não vejo a hora de chegar em minha maquina. Cheguei.

O chefe vem ao meu encontro cumprimentar-me. Que raiva. Por que lavei as mãos?

- Boa tarde Jeremias.

- Tarde chefe.

- Como estão as coisas?

- Melhor agora.

- Até mais ver.

Virou-se de costas e caminhou com passos imponentes, parecia presidente em dia de posse na parada militar. Certamente não haveria de ter usado o banheiro da fábrica. Tomara que cortem o papel dele também, queria vê-lo todo assado, andando igual astronauta em órbita da terra. Melhor esquecer isso. Preciso correr atrás dos resultados. Tenho que atingir as metas . Quem sabe mês que vem comprem papel higiênico.

¹Citação utilizada em partitura musical que define o andamento da melodia, italiano significa: “alegre, mas não muito”.

²Mensagem publicitária musicada (vinheta) elaborada com um refrão simples e de curta duração, a fim de ser lembrado com facilidade.

³Hábito que tem o trabalhador espanhol em descansar (dormir) após o almoço.

Sidrônio Moraes
Enviado por Sidrônio Moraes em 22/06/2008
Reeditado em 06/07/2009
Código do texto: T1045531