Ramír em Nova York

   Entorpecido pela fome, deitou-se numa estreita tábua de madeira e adormeceu. Sentiu frio, tateou ao acaso, recurvou seu magro corpo e agarrou-se as pernas. Às moscas, convivia entre insetos e animais; seus sonhos transformavam-se em pesadelos e aos 13 anos de idade carregava o peso do mundo em seus ombros. 

   Selvagem. Demonstrava ser frágil, mas mesmo assim o destino violentava-lhe de forma imparcial, segundo a segundo; carrasco, surreal, sem pressa.
Inconscientemente reflexo, usou depuradamente os sentidos. Pôde ouvir o ganido de cães famintos que prenunciava disputa pela sobrevivência, salivou o acre da morte. Inspirou, expirou, a cada renovo de ar que percorria seus pulmões, deixava em seu olfato o fedor de estar, ser, permanecer.

   Ramír passava despercebido, depreciado e solitário. O relógio do tempo havia parado, retinindo ensurdecedor, atordoando-lhe o espírito e seus ponteiros não indicava qualquer indício de socorro, auxílio ou solidariedade. Sem nenhum preceito racial, a cor de sua pela era indiferente. Her Hitler, geminiano ascendente escorpião, que Vênus o tenha. Louro, olhos verdes, cabelos lisos, tinha como única ligação no sistema de cotas o fato de ser miserável.

   A noite abraçava-se aos seus irmãos para conter o frio, era o único momento que pudera ter aconchego do calor humano e por mais que relutasse as aproximações, de junho a agosto sentia-se protegido. Nos banhos às gélidas cuias, tentava aquecer-se aos saltos; inflamando os brônquios, ardentes escravos hiportémicos. 

   Compartilhava espaço, tempo e movimento num cubículo que mal conseguiam oxigenar suas traquéias, sem nenhum pudor ou constrangimento, assistia simultaneamente a realização das necessidades fisiológicas diárias de todos; cachorro, ás vezes, gato. Tentava ser criança, parecia sê-lo.

- Gatinho. Pixchiu, xchiu, xchiu, xchiu, xchiu.
- Gatinho. Pixchiu, xchiu, xchiu, xchiu, xchiu.

   Gostava da solidão, sabia que tudo aquilo pertencia a ele e de forma alguma pretendia compartilhar com alguém. Orgulhoso. Sentia vergonha, mesmo sem saber porquê e de quê. Não queria que a vida soubesse de sua amargura, às escondidas, sorria... Gargalhada insana, perturbado olhava de um lado ao outro para ver se ninguém o observara. Sem concepção do bom, não tivera parâmetro para avaliar toda aquela cadeia desfigurada de assombrações, manteve-se inerte, cresceu impávido colosso.

- Ouviro Inpiranga margins pra cida. Dum povo éroico bravo recumbante ...

   Em raios fúlgidos, sentiu seu rosto levemente umedecido, abriu os olhos e viu cães e gatos ao seu entorno. Mais uma vez sonhara, percebeu que não teria como afugentar seus fantasmas e nem mesmo seus sonhos dar-lhe-ia um pouco de conforto. Ainda fraco, ergueu o tórax e assentou-se, olhou rapidamente ao redor e mais uma vez escondeu-se dentro de si. Paus, pregos, madeira. Nauseabundo, desceu goela abaixo o gosto de saneamento básico. Emaranhado de fios descascados, alguns gritos e sons horripilantes. Mulheres, crianças, mulheres crianças. Crianças soldados. Soldados sem pátria. Maldade. Miséria. Prostituição. Violência. Fome. Desigualdade.

   Levantou, pôs-se a olhar cães e gatos. Correu em disparada.

- Gatinho. Pixchiu, xchiu, xchiu, xchiu, xchiu.
- Fiui.Fiui.Fiui. Au.Au.Au.Au.


Samuel Moraes     
22/06/2008
Sidrônio Moraes
Enviado por Sidrônio Moraes em 22/06/2008
Reeditado em 03/05/2010
Código do texto: T1045519
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