2002-2008
Pensando em que eu poderia dizer aqui, resolvi escrever sobre um assunto que geralmente eu não falo muito. Família. A morte de minha avó.
Talvez esse foi o motivo que eu não quis comentar nada sobre meu aniversário no último dia 26. Justamente nesse dia eu acordei pensando na minha avó. Coisa que eu não orgulhosamente, não faço. Eu não sei o que me aconteceu, logo após de eu ter aberto meus olhos e processar a idéia de que era meu aniversário veio a imagem da minha avó na cabeça. Assim, do nada. Isso nunca aconteceu, nem mesmo no dia do aniversário dela. Friamente falando, eu quase nunca penso nela. E analizando isso, o fato de eu ter sido tão indiferente todos esses anos me incomodou muito. Eu tinha 13 anos quando ela faleceu e até o dia do meu aniversário de 19 anos eu raramente lembrava da sua (ex) existência . Exceto quando meu pai passava na frente do cemitério onde ela se encontra e eu ficava pensando como ele se sentia em saber que a sua mãe estava ali, com o corpo em processo de decomposição. Na verdade eu nunca entendi o que se passa pela cabeça do meu pai. Eu sempre soube (e senti) que ele é uma pessoa que tem muita dificuldade em demonstrar sentimentos. Eu pensei que era por causa da sua profissão, mas não, ele é assim mesmo. Tive a prova maior no dia do funeral da sua mãe e minha avó. Ele não derramou uma lágrima. Todas suas irmãs e irmãos chorando compulsivamente e ele ali, uma rocha. Em todo o trajeto, carregando o caixão, assistindo-a ser enterrada e nada saía de seus olhos. Nem tremidinhas no lábio inferior, olhadas pro teto. Nada, nada, nada. Me recordo de ter ficado pensando sobre o comportamento de meu pai uma semana após o funeral. E também foi a última vez.
Até o mês passado eu não me tocava que o dia das mães não deve ser algo muito agradável pra ele. E quando todas essas lembranças vieram à tona, comecei a lembrar coisas mínimas sobre curta vida de minha vó. Lembro-me que achava engraçado o jeito de ela falar, já que ela nunca perdeu seu sotaque português from Portugal. Eu lembro que ela me deu de aniversário um vestido de cigana que ela mesmo tinha feito e que eu o usei por meses até a minha mãe conseguir dar um fim, lembro inclusive que ela e minha mãe não eram as pessoas mais compatíveis do mundo e que sempre houve bastante discórdia no que se diz respeito as duas. Lembro que eu adorava sair da festa natal da minha casa e ir pra sua porque sabia que lá não ia ter ninguém comentando sobre o vestido da vizinha, eu poderia tirar o meu sapatinho de boneca que era fofo, mas machucava muito os pés no meio da festa e correr em direção as havaianas, ela não me corrigiria na mesa, deixaria eu comer com as mãos se quisesse, não ia perguntar sobre as minhas notas, não ia perguntar se eu já tinha alguma idéia da profissão que eu ia seguir.. Nada disso. Estar com ela e no seu mundo era não estar no meu. Era um mundo tão mais simples e perfeitamente aceitável na minha concepção. Provavelmente por isso não tive dificuldade de aceitar a situação quando ela faleceu. Era surreal demais pra mim, eu ainda criança, pensava que a vida que ela levava não poderia ser normal. Viver do jeito 'paz e amor-odeio-frescurite-etiqueta-e-afins' era viver contra as próprias regras da minha vida . Não estava certo e minha mãe sempre fazia questão de me lembrar disso. Acho que se eu introduzisse a filosofia de vida da minha vó na minha, minha mãe enlouqueceria. Então quando eu estava com ela, eu tinha a sensação que aquilo logo iria acabar e que a minha vida real ia voltar.
No funeral o corpo de minha vó estava coberto por flores deixando a mostra apenas o rosto lívido e bonito. Lembro-me de ter procurado naquele rosto algum sinal da brutalidade, algum sinal de tristeza ou de susto. Mas me deparei apenas com um corpo desconhecido, trivial. Nada como eu a tinha em mente e nada parecida com meus outros avós da quase mesma idade que estavam vivendo do outro lado da cidade. Talvez fosse o fato de saber da forma como havia morrido, que me impressionava e a todos que estavam lá. Fora tudo tão rápido, será que ela sentiu alguma dor?
Não chorei como meu pai, me aventurei a aproximar do caixão apenas três vezes. Analizei minutos suas unhas bem feitas e o tom da pele, aquele aspecto de cera antiga.. algo nela parecia mais morto que em outros mortos e isso me passava uma sensação estranha. Talvez porque fosse a minha avó, no final das contas.
O mais importante é perceber que mesmo que ela tenha partido há 6 anos atrás, de um jeito ou de outro tudo o que vivenciamos ainda me ensina muito, mesmo que eu tenha demorado anos pra perceber. Obrigada pelo presente de aniversário, vó. Dessa vez eu aprendi.