Pai, todos os dias, num porta-retrato estrategicamente colocado numa estante da sala de estar, eu olho aquela foto em que estávamos andando no jardim de Miracema- RJ. Então, me vejo com o mesmo sorriso, que ainda trago comigo, segurando a sua mão e a de mamãe, que por sua vez segurava a de Nilinho, e este a de Niltinho, e este a de Nedinho. Nossos semblantes expressam a alegria de um tempo muito bom.
 
Você, pai, estava tão lindo, mamãe tão elegante, eu parecendo uma princesinha e os meninos vestidos com calças e camisas iguais pareciam trigêmeos. Se era moda ou se era para evitar brigas, nunca saberei!
 
Viajo na memória e vejo nossa casa enorme, o salão do Tiro de Guerra 217, eu no colo dos soldados atiradores, você dando ordem unida e marchando com garbo, mamãe comandando a casa, os meninos brincando de Roy Rogers, bolebas, piões e setas...
 
Ninguém nunca vai saber qual era o tom de verde de sua bicicleta e muito menos que ela tinha farol movido a dínamo e uma campainha que, por meio do toque do polegar numa pequena alavanca, fazia “tlim-tlim”. Ninguém conseguirá, de fato, imaginar como você fazia para carregar todos os seus filhos numa só bicicleta, não é, pai? Outra coisa impossível de saber é como era exatamente o macio do travesseirinho que cobria o pescoço do cavalo de cor castanha, que levava a nós dois pelas fazendas de goiabas fluminenses.
 
Como alguém poderá supor como eram os carneirinhos e coelhinhos que eu enxergava nas brancas nuvens que enfeitavam o céu muito azul da terra em que nasci? Quem conseguirá imaginar o que eu pensava naquelas intermináveis sessões de cinema que mamãe me obrigava a ver com você, por puro ciúme de seu marido “galante”?
 
Nada disso, pai, alguém conseguirá de fato imaginar ou sentir porque seria necessário ter conhecido as cores e os aromas daquele tempo. Eis por que esse “filme” é só meu.
 
Quarenta e oito anos após esta foto de família, você e mamãe já não estão mais conosco e eu só consigo ouvir suas vozes e sentir seus cheiros e carinhos em meus sonhos.
 
Quando mamãe “partiu” eu adoeci, mas numa noite, eu juro, ela veio me ver em meu quarto, conversou comigo, beijou-me e pediu-me que eu lhe desse um recado. Entre atordoada e chorosa eu cumpri o prometido e isso me ajudou a superar a perda.
 
Quando você partiu, pai, eu também adoeci, me prostrei, mas você não veio me ver. Fiquei três meses tentando esquecer, sorrir, reagir e perdoar todos que foram covardes, omissos, relapsos e responsáveis por eu não tê-lo mais.
 
Até hoje é impossível dissolver o nó que me aperta a garganta, os ouvidos, os olhos e o peito, quando me lembro da tarde em que, apoiado em meus ombros, no corredor do hospital Santa Mônica, em Vila Velha, você deixou de andar para sempre. A partir de então, aconteceu o que eu jamais imaginei: eu teria de banhá-lo e carregá-lo no colo, como tantas vezes comigo você fez. Só eu vi o seu semblante de vergonha e de dor resignada. Só eu e Neolucio vimos os seus olhos opacos nos momentos finais. São cenas tristes, dolorosas, e, ainda agora, chorar é inevitável.
 
Lembro-me de que pedi tantas vezes que Deus que não o levasse, depois supliquei-Lhe que não me abandonasse, por fim, roguei para que me reerguesse. Ao que parece, pai, Ele tinha tanta gente para ouvir, socorrer e confortar que eu, então, ficava quietinha, sumida num canto qualquer, esperando pelo dia em que Ele iria poder me atender.
 
Desde 10 de julho de 1994, qualquer olhar sumido e embotado basta para contaminar o meu, migra para minhas retinas a tristeza dos olhos de quem perde os seus.
 
Por sorte, certa noite eu sonhei que você e mamãe valsavam, olhando-se nos olhos, ao som da música que você costumava cantar para ela: “Eu sonhei que tu estavas tão linda...”. Eu, então, em meu sonho, os abracei e beijei longamente, pude sentir seus hálitos e o perfume de Almiscar suave que mamãe usava... Falei-lhes sobre minha saudade e sobre como é ruim não ter mais os seus colos, e de ter perdido dois amigos fiéis a quem nem sempre eu soube compreender.
 
Não sei quando voltaremos a nos encontrar. Vivo cada vez mais dividida entre esse desejo e a certeza de que os dois seres nascidos de mim, ainda são meus dependentes.
 
Se um dia deles eu merecer a mesma saudade, talvez eles também se emocionem quando olharem nossa foto de família.
 
 
 
 
 
 
NORMA ASTRÉA
Enviado por NORMA ASTRÉA em 21/06/2008
Reeditado em 30/08/2015
Código do texto: T1044652
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