MEMÓRIA-INVERNO ( sozinha na minha cama)
Mas neste inverno daqui, do jeito que está frio, um corpo na nossa cama faz diferença que se sente na pele, pra dentro dela e lá nos confins das entranhas . E decididamente, nossas casas são bastante primitivas no que concerne a enfrentar as temperaturas do inverno. Um fogão a lenha eu tive, aí reclamaram do cheiro de fumaça, e dava trabalho ficar colocando lenha. Faz tempo que o dei. Ar condicionado eu não tenho na casa toda, aí ficam aquelas diferenças de temperatura quando a gente vai lá pra cozinha e pensa estar entrando num "freezer". Eu ontem estava com muita roupa de lã e enrolada em um cobertor. Aí fiquei que nem gato, enroscada e só deixando de fora os olhos . Nesta hibernação compulsória e não tendo que sair de casa, sem relógio a não ser como uma vaga indicação de que o dia está indo, ou que terei um comproisso perdido em alguma hora e meia de uma tarde entre tantas outras iguais, estou diretamente conectada a minha memória-inverno, com todas as peculiaridades daí advindas.
Na infância de muita gente que já viveu há mais tempo nos interiores deste país, existe sempre um fogão à lenha ou mesmo feito de pedra, com uma grade sobre a abertura aonde pôr as panelas ou o que for preciso aquecer. E nos lugares frios, mãos suspensas também, sendo esfregadas e recebendo o calor que o corpo não consegue produzir sozinho. Ser aconchegado nas saias protetoras de uma avó é, ao lado deste verdadeiro coração pulsante da casa, uma das telas mais ricas do meu museu de lembranças valiosas.
Nesta matriz geradora de energia da casa que é a cozinha, há também um avô de roupas escuras, as vezes um velho chapéu de feltro na cabeça, numa cadeira baixa esfregando as mãos entre os joelhos, corpo inclinado pra frente. As paredes de uma cor que um dia foi clara e agora é uma aquarela acinzentada, com alguns mapas mais escuros em alguns pontos de provável umidade. A um canto um monte de gravetos pra iniciar o fogo, que se produz com pedços de lenha cortados em tamanhos variados, sempre excedendo o espaço em pontas irregulares aparecendo e às vezes chiando pela umidade de madeira ainda verde. E a cuia de chimarrão sendo dividida entre meu avô e minha avó que mexe a boca de um jeito engraçado ao sugar o líquido apertando a língua contra o bocal da bomba e repuxando a boca como quem quer mostrar os dentes. Gatos pra todo lado, uma panela de feijão a ferver, o café num bule alouçado com algumas falhas na cor, qual bolhas estouradas. Parece que teria havido alguma flor pintada nele, mas agora restam apenas umas manchas indecifráveis. Sobre uma mesa onde a pintura não existe há muito, e o tampo tem gastado em alguns pontos por anos e anos de atrito, está uma bacia grande feita de latas de azeite abertas e emendadas. E até os cinco ou seis anos eu ainda tomava mamadeira, que era levada na cama por essa avó pressurosa e a imagem daquela garrafa com bico de borracha cheia de café com leite vindo em minha direção está incluída também nas figurinhas raras deste álbum de lembranças.
Quando penso na extrema simplicidade desta casa sei que, apesar disso, nunca faltou nada naquela mesa e que eu sempre tive sapatos, já que meu pai os fazia pra mim, lindas botinhas de couro branco, sapatinhos de boneca em verniz preto, e que sempre tive roupas quentes pro frio, blusas tricotadas por minha mãe, vestidos feitos por uma avó. Não se bebiam refrigerantes, a não ser nas festas e comiam-se frutas que tivéssemos nos pátios, e não como agora quando vejo árvores frutíferas pra enfeite em algumas casas, os frutos caindo e os meninos tomando Tang. Era uma realidade onde os valores se centravam em coisas mais essenciais ao bem viver e que infelizmente foram se perdendo ao enveredarmos pouco a pouco para um consumismo desenfreado e bestializante, tudo muito bem arquitetado por aqueles que precisavam de mercado pra vender suas tralhas.
E nas noites de São João sempre havia a nossa fogueira, já que espaço não faltava e lá no meio do milharal já seco e com aquelas formas retorcidas em palha parecendo esqueletos, era aberta uma clareira pelo grupo formado por meu avô , meu irmão e mais alguém que aparecesse, primos, vizinhos, um tio, e iam entre muita conversa e agitação montando facilmente aquele monumento onde não faltavam as taquaras verdes pra dar os estouros. Pra isso era só andar alguns metros e cortar quantas quisessem na enorme taquareira a um canto do terreno. Eu adorava aqueles canudos secos que se desprendiam e eram lisos e brilhantes por dentro. O chão era forrado deles bem como das finas folhas secas e quando a gente pisava fazia um ruído gostoso e os pés quase afundavam.
Meus atuais invernos se sucedem vertiginosamente e aquele mês de junho que custava a chegar, quando os dias iam encurtando até chegar o dia vinte, a noite mais longa do ano, parecem referências frágeis e quase imperceptíveis, quando as telas que ocupam nossas vidas, a TV e o computador, impõe suas presenças e ditam novos meios de saber o mundo. Quando as praças arborizadas e floridas de outrora, escasseiam e, ao invés de locais de tranquilas caminhadas, são na maioria das vezes utilizadas como campo de corrida para fins de exercício, passadas largas e ritmadas, crnômetros, enfim, parece que nada mais pode ser simples e existir sem algum propósito. A casualidade é dama fora do baralho, e a vadiagem parece estar sendo execrada até como forma de lazer. O culto ao pragmatismo e a guerra ao ócio atingem o auge nestes tempos onde ter é ser. E a paranóia é tanta que uma pessoa outro dia, chamada a falar sobre a fomação do Rio Grande conseguiu dizer que os índios pouco contribuíram na formação cultural do Estado. Só faltou dizer,"ah esses índios inúteis!..."
E eu cá comigo, enrolada num cobertor, vou folheando meu álbum de figurinhas das memórias de invernos distantes, e faço uma banana para esta visão de mundo com gente tal o personagem de Quino, dono do supermercado que diz: " enfin, surge la primavera con su costumbrado stock" Sou capaz de jogar, jogo mesmo todo o meu sossego e vadiagem hibernal como tem muita gente, muita gente mesmo, capaz de querer medir sentimentos com uma trena. E não há os quatro cantos do mundo? O mundo é quadrado, não estão vendo?
Mas neste inverno daqui, do jeito que está frio, um corpo na nossa cama faz diferença que se sente na pele, pra dentro dela e lá nos confins das entranhas . E decididamente, nossas casas são bastante primitivas no que concerne a enfrentar as temperaturas do inverno. Um fogão a lenha eu tive, aí reclamaram do cheiro de fumaça, e dava trabalho ficar colocando lenha. Faz tempo que o dei. Ar condicionado eu não tenho na casa toda, aí ficam aquelas diferenças de temperatura quando a gente vai lá pra cozinha e pensa estar entrando num "freezer". Eu ontem estava com muita roupa de lã e enrolada em um cobertor. Aí fiquei que nem gato, enroscada e só deixando de fora os olhos . Nesta hibernação compulsória e não tendo que sair de casa, sem relógio a não ser como uma vaga indicação de que o dia está indo, ou que terei um comproisso perdido em alguma hora e meia de uma tarde entre tantas outras iguais, estou diretamente conectada a minha memória-inverno, com todas as peculiaridades daí advindas.
Na infância de muita gente que já viveu há mais tempo nos interiores deste país, existe sempre um fogão à lenha ou mesmo feito de pedra, com uma grade sobre a abertura aonde pôr as panelas ou o que for preciso aquecer. E nos lugares frios, mãos suspensas também, sendo esfregadas e recebendo o calor que o corpo não consegue produzir sozinho. Ser aconchegado nas saias protetoras de uma avó é, ao lado deste verdadeiro coração pulsante da casa, uma das telas mais ricas do meu museu de lembranças valiosas.
Nesta matriz geradora de energia da casa que é a cozinha, há também um avô de roupas escuras, as vezes um velho chapéu de feltro na cabeça, numa cadeira baixa esfregando as mãos entre os joelhos, corpo inclinado pra frente. As paredes de uma cor que um dia foi clara e agora é uma aquarela acinzentada, com alguns mapas mais escuros em alguns pontos de provável umidade. A um canto um monte de gravetos pra iniciar o fogo, que se produz com pedços de lenha cortados em tamanhos variados, sempre excedendo o espaço em pontas irregulares aparecendo e às vezes chiando pela umidade de madeira ainda verde. E a cuia de chimarrão sendo dividida entre meu avô e minha avó que mexe a boca de um jeito engraçado ao sugar o líquido apertando a língua contra o bocal da bomba e repuxando a boca como quem quer mostrar os dentes. Gatos pra todo lado, uma panela de feijão a ferver, o café num bule alouçado com algumas falhas na cor, qual bolhas estouradas. Parece que teria havido alguma flor pintada nele, mas agora restam apenas umas manchas indecifráveis. Sobre uma mesa onde a pintura não existe há muito, e o tampo tem gastado em alguns pontos por anos e anos de atrito, está uma bacia grande feita de latas de azeite abertas e emendadas. E até os cinco ou seis anos eu ainda tomava mamadeira, que era levada na cama por essa avó pressurosa e a imagem daquela garrafa com bico de borracha cheia de café com leite vindo em minha direção está incluída também nas figurinhas raras deste álbum de lembranças.
Quando penso na extrema simplicidade desta casa sei que, apesar disso, nunca faltou nada naquela mesa e que eu sempre tive sapatos, já que meu pai os fazia pra mim, lindas botinhas de couro branco, sapatinhos de boneca em verniz preto, e que sempre tive roupas quentes pro frio, blusas tricotadas por minha mãe, vestidos feitos por uma avó. Não se bebiam refrigerantes, a não ser nas festas e comiam-se frutas que tivéssemos nos pátios, e não como agora quando vejo árvores frutíferas pra enfeite em algumas casas, os frutos caindo e os meninos tomando Tang. Era uma realidade onde os valores se centravam em coisas mais essenciais ao bem viver e que infelizmente foram se perdendo ao enveredarmos pouco a pouco para um consumismo desenfreado e bestializante, tudo muito bem arquitetado por aqueles que precisavam de mercado pra vender suas tralhas.
E nas noites de São João sempre havia a nossa fogueira, já que espaço não faltava e lá no meio do milharal já seco e com aquelas formas retorcidas em palha parecendo esqueletos, era aberta uma clareira pelo grupo formado por meu avô , meu irmão e mais alguém que aparecesse, primos, vizinhos, um tio, e iam entre muita conversa e agitação montando facilmente aquele monumento onde não faltavam as taquaras verdes pra dar os estouros. Pra isso era só andar alguns metros e cortar quantas quisessem na enorme taquareira a um canto do terreno. Eu adorava aqueles canudos secos que se desprendiam e eram lisos e brilhantes por dentro. O chão era forrado deles bem como das finas folhas secas e quando a gente pisava fazia um ruído gostoso e os pés quase afundavam.
Meus atuais invernos se sucedem vertiginosamente e aquele mês de junho que custava a chegar, quando os dias iam encurtando até chegar o dia vinte, a noite mais longa do ano, parecem referências frágeis e quase imperceptíveis, quando as telas que ocupam nossas vidas, a TV e o computador, impõe suas presenças e ditam novos meios de saber o mundo. Quando as praças arborizadas e floridas de outrora, escasseiam e, ao invés de locais de tranquilas caminhadas, são na maioria das vezes utilizadas como campo de corrida para fins de exercício, passadas largas e ritmadas, crnômetros, enfim, parece que nada mais pode ser simples e existir sem algum propósito. A casualidade é dama fora do baralho, e a vadiagem parece estar sendo execrada até como forma de lazer. O culto ao pragmatismo e a guerra ao ócio atingem o auge nestes tempos onde ter é ser. E a paranóia é tanta que uma pessoa outro dia, chamada a falar sobre a fomação do Rio Grande conseguiu dizer que os índios pouco contribuíram na formação cultural do Estado. Só faltou dizer,"ah esses índios inúteis!..."
E eu cá comigo, enrolada num cobertor, vou folheando meu álbum de figurinhas das memórias de invernos distantes, e faço uma banana para esta visão de mundo com gente tal o personagem de Quino, dono do supermercado que diz: " enfin, surge la primavera con su costumbrado stock" Sou capaz de jogar, jogo mesmo todo o meu sossego e vadiagem hibernal como tem muita gente, muita gente mesmo, capaz de querer medir sentimentos com uma trena. E não há os quatro cantos do mundo? O mundo é quadrado, não estão vendo?