A HISTÓRIA DA TRIPINHA

Cheguei a Linhares dia 13 de março de 1968 e fomos morar numa casa na rua Boa Vista, muito próximo à “avenida”, uma  espécie de vila com várias casas praticamente iguais: a famosa avenida Soeiro Banhos, que ainda está bem inteira por lá.

Adolesci pertinho de Dª Alci, Dª Aracy, Nayade, Dª Dovina, Dª Maria (de Sr. Jorge), Dª Moema, Dª. Morena, Dª. Mara, Dª. Olga, Dª Celina (falecida, esposa de sr. “Zé faz tudo”), Dª Lourdes, Dª Antonieta Banhos Fernandes e de Dª Anita Paiva Rabello, uma das melhores doceiras e quituteiras que Linhares já teve.

Amiga de sua sobrinha, Lucinha Paiva, nossas brincadeiras prediletas eram jogar queimadas ou subir em árvores. Nosso sonho de consumo era ter sempre um minivestido novo para ir à missa, tomar uma “vaca preta” na lanchonete do Wilson (onde hoje é o restaurante Tropical) ou ir aos “arrasta-pés” na casa de alguém. Nem sempre fui convidada para as festinhas na casa de Nildinha de Sr. Aurelino, ou de Lita e Rita, filhas do juiz de Direito, Dr. Norton de Souza Pimenta, mas também não me importava, porque meu soutien era “menina-moça” e eu ainda nem tinha aprendido a gostar do bicho homem.

O que eu gostava mesmo era de ir à casa de Dona Anita para sentir os bons aromas de lá, para ouvir seu filho Jorjão, meu amigo “Pé de Jegue” tocando violão e cantando “Mujer, se puedes tu com Dios hablar...”, ou simplesmente para ver Dona Anita pintando os cabelos para ir às domingueiras do Clube Juparanã: ela o fazia esfregando uma folha de papel carbono preto no couro cabeludo, o que eu achava muito criativo e divertido.

Ao entrar na sala, via-se logo a cozinha com uma mesa imensa, onde se podiam sentir os aromas dos doces e salgados das melhores festas de Linhares. Tudo bastante diferente dos de hoje. Onde você tem visto canudinho de doce de coco, doce de mamão ou recheado de camarão coberto com queijo parmesão? Onde estão as lindas japonesas que nada mais eram que uma versão dos olhos de sogra, feitos com ameixonas que formavam os cabelos e cujos rostos eram manualmente pintados e decorados com florezinhas? Alguém sabe onde foram parar as negas malucas de brigadeiro ou as tartaruguinhas feitas com cascas de nozes, com cabecinhas de grão de bico e pés de amendoins?  E os docinhos em formato de cestinhas cobertos por jujubinhas ou mini frutas (bananinhas maçãs, laranjas e limão.)?

Não, meu leitor, naquela época não existiam buffets. As festas, assim como os velórios, eram feitos em casa, e não havia horário para acabar. Elas eram tão boas, que havia uma classe que se divertia descobrindo onde elas seriam: a classe dos “penetras”.

Por falar neles, soube que na festa de quinze anos de Bete Salvadeo, feita no famosíssimo restaurante Mocambo (onde hoje é a Cash Boutique) havia tantos “penetras” que em dado momento, seu irmão Danilo resolveu organizar, bateu palmas, pediu silêncio, e ordenou que “os convidados do noivo ficassem à esquerda e os da noiva à direita”. Quando os “penetras” assim procederam, ele teria dito: “Agora, vocês xispem daqui porque isso é uma festa de quinze anos!”

Voltemos à Dona Anita. Hoje dois grandes amigos meus são sua filha Regina Lúcia e o seu genro Whelligton Renan. Por meio deles, eu soube que minha musa era filha de Dona Petronilha Reis Paiva e do Sr, João Paiva, os proprietários da primeira padaria de Linhares, localizada na mesma rua Boa Vista ou rua dos Amores sem Futuro.

Quando mocinha, noiva de um tal Zizil Abel de Almeida, encantou-se (ela e todas as moças de Linhares)  por um jovem, topógrafo e quase engenheiro, que viera para Linhares para ajudar na construção da ponte sobre o Rio Pequeno: Sr. Inimah de Mattos Rabello. Casou-se com ele e teve nada menos que 07 filhos: Lauro, Luiz Carlos (Borjão), Gláucia, Fernando, Jorge (Pé de Jegue), Pedro Paulo (Paulinho) e Regina Lúcia.

Sr. Inimah era uma figura caricata e desbocada toda vida. Magrinho, sempre de terno, gostava de uns goles e de responder com palavrões aos moleques que o provocavam perguntado: “Vamos dar uma graxinha aí, seu Inimah? Sua resposta era sempre: “Traz a b_ c _ ta da mãe que eu engraxo”.

Descobri que Dona Anita começara sua vida de doceira, fazendo cocada baiana, carapito e muchá para vender e ajudar a sustentar os filhos, após umas escapadelas de Seu Inimah.

Minha musa não sabia ler, mas sabia desenhar os números e os ingredientes. Assim, suas receitas tinham a quantidade e os desenhos de colheres, ovos, abacaxis, cocos.... Ninguém sabia fazer biscoitos, recheios ou bolos melhores do que minha heroína, mas, por sorte, sua nora Maria e sua filha Regina Lúcia aprenderam e preservam o know how até hoje. 

Na noite de seu falecimento, tive a honra de chegar logo após o seu último suspiro e ajudei a vesti-la e a pô-la no esquife. Passei a madrugada com a família na capelinha, comendo bolo feito por Regina Lúcia, em homenagem à sua mãe.

Dona Arlêne Campos diz que devemos àquela querida Sra. a invenção do salgadinho mais genuinamente linharense: a tripinha.

A história teria começado quando Dona América, esposa de Dr. Lastênio Calmon, fora acompanhar a realização dos doces e salgados encomendados para a festa de casamento de uma de suas filhas. Ao ver a grande quantidade de massa sobrando, Dona América teria lhe perguntado o que faria. Dona Anita não titubeou: “Vou fazer uns salgadinhos que são a última moda em Paris!”. Assim, ela juntou queijo parmesão à massa, cortou-a em tirinhas, fritou-as e nos legou o petisco que, ao comer, me traz à lembrança aquela que marcou, definitivamente, a história de Linhares.

Prova disso é que em muitos álbuns das famílias linhareses, há fotografias dos lindos doces, bolos de casamentos ou de aniversários feitos por D. Anita Paiva.

 

NORMA ASTRÉA
Enviado por NORMA ASTRÉA em 20/06/2008
Reeditado em 20/03/2015
Código do texto: T1042498
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