Crônica à Cidade Louca.

Crônica à Cidade Louca

Pág. 188

É quando te vejo em folhas verdes à chuva, ao vento... desordenada nas estruturas... entranhas vazando esgotos e enchentes... que sinto: precisas de ajuda. Às vezes, és mulher desnuda, prenhe, desesperada. Estupro, assassinatos: vives sob ameaça. Se nuvens brancas são tragadas pela poluição de fábricas, indústrias, veículos (sufoco) resistimos. Por canais, rios, ruas, ando a esmo. Sempre que te espio, furtivamente de cima, devo confessar: és bela, és única! Apesar de seres famosa, (praças, parques, monumentos, buracos, crateras, avenidas) é quando te tornas humana que te aprecio mais... Vôo livre espaços, adormeço em vãos de viadutos mendigo, marginal, louco, menino de rua... Sonho, desperto real em teu seio. Não careço de atenção, pois quem ama está preenchido de tudo. Não temo a morte, pois se renasce na próxima parada (de metrô, de ônibus, de trem) novo e sem lembranças... Teus dirigentes não me atraem. São arrogantes, previsíveis, limitados políticos e passageiros... Se pinto, desenho, sou artista inspirado. Em minha tela és modelo favorito. Em teus muros e paredes sou grafiteiro acuado por gangues de pichadores... Diante de ti não uso máscara, cartões de crédito ou títulos. Envolvo-me em tua graça em pêlo. Murmuramos, gememos, gritamos... Ecoamos, eclodimos: ecologia.

Numa sociedade adormecida, robôs transitam dirigidos pelo mesmo fio condutor: o Ego. Contudo, os que vêm a mim, lhes liberto a alma. Ser indivíduo, separar-se da massa, é ter responsabilidade maior. A cisão é inevitável. Voltam a caminhar verdadeiros e vivos. Aos que se rendem a mim, aos que comungam comigo, insisto: atenção às artimanhas do Eu.

É preciso burlar as leis que impedem a evolução do espírito com regras e condicionamentos. Não há cárcere pior do que a própria razão. Porque, além dos limites da mente a vida venturosa faz morada. Digo: a anarquia em harmonia é aparentemente uma contradição. A meditação permite-nos o divino. Sempre que me disponho a puxar teu véu, êxtase se apossa de mim e dançamos música, deuses, como dois pagãos. O importante é hoje: solidão, risos, tristeza, sofrimento. A experiência nada mais é que o húmus do crescimento. És pedaço do todo, não importa como te chamas, floresces amante em qualquer estação...

Do lado limpo da cidade, há coisas mortas. Do lado sujo, a vida tenta escapar por detritos em grande aventura...

Entrevista

Pág. 183

EG: Hoje é sábado. Estamos aqui, neste ponto alto e ermo, vendo a cidade lá em baixo. Não estamos sós, temos a companhia do famoso pichador Mosca 5. Ele concordou em falar, oculto, atrás dessa cinematográfica cabeça de inseto. Tudo bem aí?

Mosca 5: Tudo OK!

EG: Qual é seu lema?

Mosca 5: Nenhum espaço será perdoado.

EG: Age sozinho ou em gangue?

Mosca 5: Hoje em dia sozinho. No começo saía em turma. Era apenas pelo prazer de fazer um X ... zoar mesmo...

EG: Prefere agir a que horas?

Mosca 5: De preferência em madrugada escura. Em noite de lua é mais fácil pra polícia te pegar. Um dia quase ela me grampeou...

EG: Qual a frase pichada mais antiga que conhece?

Mosca 5: É uma dos anos setenta. Eu era garoto ainda. "Celacantino provoca maremoto".

EG: Você disse não zoar mais. Então amadureceu?

Mosca 5: Com o passar do tempo aprendi que a pichação pode ter um cunho social. Não se pode pichar qualquer coisa.

EG: Você se contradiz: nenhum espaço será perdoado...

Mosca 5: Eu me contradigo...

EG: Qual seu maior medo?

Mosca 5: Ser decifrado, ser descoberto...

EG: A produção caprichou nessa cabeça... Você está horroroso!

Mosca 5: Obrigado...

EG: Qual seu maior prazer?

Mosca 5: Pichar espaços ociosos da cidade...

EG: Você trabalha, estuda, se diverte?

Mosca 5: Não sou nenhum marajá! Vivo como qualquer rapaz da minha idade.

EG: Diga seqüência de filme favorito.

Mosca 5: Não é da minha época. Vi em vídeo. Letreiros finais de “West Side Story” sobre parede toda pichada..

EG: Grande musical! Se pudesse ser outra pessoa, quem seria?

Mosca 5: Osho...

EG: Quem é Osho?

Mosca 5: Não sei... o ouvi falar uma única vez... Depois o levaram preso...

EG: Precisamos descobrir essa figura e trazê-la ao programa... Muitos julgam você um debilóide. O que acha disso?

Mosca 5: Sou famoso e estou no seu programa, certo?

EG: Qual seu maior predador?

Mosca 5: O código penal 163...

EG: O que o chateia mais?

Mosca 5: Político em campanha... padres, pastores em ladainha...

EG: Explique esta frase: é lei entre nós, quem não fuma e nem cheira não tem boiada.

Mosca 5: Não transo drogas... Sou apenas pichador...

EG: Diga uma frase famosa sua.

Mosca 5: "Não passo de um pichador oportunista".

EG: tem medo da SIDA?

Mosca 5: Quem é essa dona?

EG: AIDS...

Mosca 5: Tenho, mas não me tornei um punheteiro...

EG: Namora?

Mosca 5: Sim, a cidade...

EG: Gosta de poesia?

Mosca 5: Pichar pra mim é um ato de beleza, de poesia...

EG: Cite um perigo inútil.

Mosca 5: Escalar edifícios e monumentos pra pichar. Ninguém lê, você pode cair e babau...

EG: Cite uma obsessão e um objeto.

Mosca 5: Pichar... uma latinha de spray...

EG: Qual seu maior arrependimento?

Mosca 5: Ter deixado de pichar algum espaço em branco.

EG: Agora podemos ver muitas estrelas no céu. Nesta escuridão toda se surgisse um ET, o que diria?

Mosca 5: Vou pichar sua nave, invadir seu planeta...

EG: Qual sua palavra favorita?

Mosca 5: Pichação...

EG: O que o faz rir?

Mosca 5: Tudo o que pensam e falam de Mosca 5...

EG: O que o faz chorar?

Mosca 5: Cebola...

EG: Que epitáfio gostaria de ter após a morte?

Mosca 5: "Aqui jaz o maior pichador do mundo".

EG: Para encerrar, diga um dilema.

Mosca 5: "Pichar ou não pichar. Eis a questão"...

Takes mostram a cidade, paredes, frases e nomes de pichadores.

Do livro Cidade Louca Sem Véu-1996-

Pablo Ribeiro