Coisinhas à toa
Não queria falar de coisas ruins, daquelas que são ruins mesmo: corrupção, violência, fome, doenças, injustiças, preconceito, exclusão social. Estou tentando escrever uma crônica, que por definição trata de assuntos do cotidiano de uma forma leve e de leitura agradável; assim, deixo estes importantes temas para a grande mídia e para nossa consciência.
Quero falar sobre coisinhas à toa que às vezes nos incomodam. Tão à toa que, se estamos muito felizes, acabam passando despercebidas. Veio-me esta idéia ao pegar, distraída, um pinhão frio e tentar mordê-lo para tirar-lhe a casca, o que havia feito com facilidade algumas horas antes, quando ainda estavam quentinhos. Para um espírito desarmado e navegando em águas neutras, como o meu naquele momento, um pinhão frio é uma dessas coisinhas à toa que incomodam. Assim como apanhar um punhado de pipocas e levá-las à boca, para constatar que estão murchas. Pipoca murcha e pinhão frio? Nem Pedro, nem Antônio, nem João aguentam.
Abrir o armário e esquecer do que havia ido buscar ali também é chato, muito chato. Igualmente chato é o pé que demora a esquentar sob as cobertas, numa noite de inverno.
A etiqueta da roupa pinicando o cangote, a calça larga escorregando na cintura, a alça do sutiã - acreditem, meninos! - quando está torcida. Cueca apertada, talvez; não posso dizer. Essas coisinhas à toa nos fazem esquecer de outras mais prementes e adquirem um status inimaginável, ao fazer com que toda nossa atenção se volte temporariamente para elas.
Morder a língua, dar topada e bater com a coxa na quina da mesa - obviamente, um evento de cada vez, em tempos espaçados; ou então não seriam coisinhas à toa, mas sim uma avalanche de azar. Também uma mosca invisível porém audível (expressão emprestada da ótima crônica da Maria Alice), uma torneira gotejando insone, um cílio virado para dentro do olho.
Todas as sete canetas ao lado do telefone, que só descubro que não escrevem quando preciso anotar um número importante, urgentemente. A chave, que nunca lembro onde coloco, e que estava agorinha mesmo na minha mão, tenho certeza! E a tesoura cega, ou o guardanapo de papel impermeável, ou um banheiro sem toalha.
O despertador que toca na madrugada gelada; a barra de apoio do ônibus melada de bala; o chiclete que estava na calçada e que, no minuto seguinte, está na sola de seu sapato; sabonete com cabelinhos estrangeiros, pasta de dente bem no fim, e - para quem não fuma - cheiro de cigarro no travesseiro do hotel.
Que mais? Cocô de passarinho seco no pára-brisas do carro. Migalhas de bolacha (ou um pedacinho, pequeno que seja, de chocolate) no sofá, apenas percebidos após sentar-se. Uma laranja apodrecida na fruteira. Pior, abrir um ovo estragado.
Essas coisinhas à toa incomodam, mas não têm o poder de nos deixar incomodados por mais do que alguns minutos. Além do que, para todas elas há soluções caseiras. Descobri que, se colocar o pinhão no microondas por alguns segundos, posso trinchá-lo com os dentes tranqüilamente, pois parecerão recém cozidos.
Outra característica dessas insignificâncias do cotidiano, quando assim descritas, é a de reafirmar a definição de crônica, que me deu certa vez Obed de Faria Jr.: crônica é aquele texto no qual você fala muito sobre nada. É isso, de fato.