Compromissos Para Amanhã
Amanhã eu vou levantar bem cedo, às cinco é uma boa hora. Assim posso fazer tudo o que tenho para fazer. Vou correr dez mil metros para recuperar a forma de oito anos atrás, quando eu fazia natação. Mas meu forte era fora da piscina, Eu dava duro no aquecimento e depois entrava na água só para relaxar. Pensando bem, naquele tempo me fazia falta mais uma hora de sono. Vou acordar às seis horas e correr cinco mil metros. Afinal, não é bom retomar a atividade esportiva com muitoentusiasmo, senão a empolgação do primeiro dia justifica a desistência do segundo. Por isso não vou forçar. Vou começar caminhando e depois-de-amanhã eu corro. Mas para isso eu preciso ir ao médico. Amanhã vou fazer um check-up completo: coração, pulmão,sangue... Vou visitar o meu amigo Nassif, que é médico, para tirar aquele quisto que tenho na barriga, e também a cartilagem de minha narina, que me impede de respirar corretamente, cansando com facilidade. Mas eu não posso chegar e dizer: "Nassif, tire isto e aquilo e me dê requisições para exames, que eu voltei a correr hoje cedo". Nem sei se o amigo poderá me receber. Acho que vou telefonar antes. Melhor acordar às sete e caminhar dois ou três quilômetros, sem me arriscar. Afinal, nestes últimos anos,tenho desgastado a forma física que trouxe da adolescência e, aos trinta anos, já é hora de pensar em acumular alguma para depois dos quarenta. Quero ver se perco os cinco quilos que engordei depois do casamento. Se não der para perder quero ao menos tirá-los da barriga, colocando-os em outro lugar - nas pernas e braços seria ótimo - para não curvar a coluna e nem passar mais as vergonhas de quando subo escadas, atrasado para minhas audiências, retardando-as ainda mais para que eu recupere o fôlego e possa falar. Amanhã quero levantar bem cedo e dizer para minha esposa que a amo, que este ano vamos viajar, tirar férias; que vou pagar a massagem, a plástica, a mesoterapia que ela tanto me cobra. Quero que vá ao shopping e compre algumas roupas novas para ela: algumas camisas, calças, sapatos, roupas íntimas, uma bolsa. Compre também alguma coisa para a filha, que cresce por dia e, de tão vaidosa, não há roupa que chegue. Já que estará lá, traga-me algumas meias e cuecas. E uma gravata bem alegre porque amanhã vou mudar meu visual. Mas ao falar da filha me lembro que a esposa sai às sete para o trabalho e a empregada só chega às sete e meia. Já não posso sair para caminhar às sete. E a filha, manhosa como é, só aceita a mamadeira se for dada pela mãe ou por mim. Se ao menos a Cida chegasse às sete eu poderia dar a mamadeira à filha e sair para a caminhada. Mas nem sei se a bandida tem chegado no horário, pois tenho levantado quinze para as oito, às vezes mais tarde, e, de vez em quando, tenho que sair enrolado na toalha para ligar o aquecedor de água para tomar banho, porque a danada se atrasou. "Foi o ônibus". "Foi a minha irmã que quebrou a perna", ou "foi ao dentista e eu tive que levar as crianças para a creche". "Foi a tia da irmã da sogra da vizinha que morreu e eu passei a noite inteira no guardamento e perdi a hora." A cada dia uma desculpa menos convincente. O que será que vai acontecer amanhã? Bom, se ela não chegar a tempo eu faço o check-up e começo depois-de-amanhã. Isso se o Nassif puder me receber amanhã. Amanhã eu preciso ganhar algum dinheiro. Afinal a crise atacou todo o mundo e não passou à margem do meu escritório. Amanhã eu preciso ver aquele processo, ligar para aquele cliente. Amanhã eu vou fazer aquela petição e falar com aquele juiz. Não é justo que um processo demore tanto. Amanhã vou reunir meus funcionários e cobrar mais empenho, eficiência, dedicação. Vamos colocar o serviço em dia e arrumar aqueles arquivos. Vou cobrar tudo o que me devem e pagar tudo o que devo. Amanhã eu douaquele telefonema. Pensando bem, amanhã preciso trabalhar até mais tarde. Depois vou para casa, cuidar de minha família, trocar aquela lâmpada, consertar o ferro elétrico, pregar aquele armário. Mas amanhã também vou brincar com minha filha; ela precisa de mais carinho. Vou ler aquele livro que comecei há tanto tempo e abandonei. Com tudo isso para fazer acho que vou dormir bem tarde. Melhor eu levantar quinze para as oito mesmo. A caminhada fica para depois-de-amanhã, depois do check-up, se o Nassif me atender amanhã, ou se eu tiver tempo para telefonar, ou ir até lá. Acho que amanhã não vai dar para a minha esposa fazer aquelas compras; quem sabe outro dia, na semana que vem. Porque eu tenho tudo isso para fazer amanhã. Se não chover, é claro.