MOTORISTAS SUICIDAS

A idéia que sempre serve de base para definir um bom motorista, existente na nossa cultura, passa quase que exclusivamente pelo domínio do veículo. Quanto maior habilidade e ousadia o condutor demonstrar possuir, melhor motorista é considerado. Detalhes como ser conhecedor das leis de trânsito, utilizar técnicas de direção defensiva, ser respeitador da vida, ter conhecimento de primeiros socorros, são detalhes poucos considerados pelo senso comum.

Viajei há algum tempo com uma pessoa que conduzia o veículo na rodovia sempre em velocidade com uma média de mais ou menos 80% superior à velocidade permitida e de maneira totalmente relapsa: chegava soltar as duas mãos do volante, usando-as para gesticular enquanto falava, com o carro seguindo em alta velocidade.

Depois de algum tempo o nosso motorista passou tomar água em uma garrafa, enquanto o carro corria, e o fazia a cada 15 minutos, ou menos. Sorvia a água segurando a garrafa com uma das mãos, antes, porém, ele passava por um ritual de procurar no assoalho do veículo pela garrafa que há pouco acabara de usar. Após achá-la bebia da forma mencionada e a recolocava em baixo para, minutos depois começar tudo de novo. Houve momentos em que ele soltava o volante e segurava a garrafa com as duas mãos... Da mesma forma, não demonstrava preocupação com as ultrapassagens que fazia ou que outros veículos faziam em direção contrária.

Para quem não é motorista, tais atitudes pode parecer algo sem importância, mas, para quem conhece um pouco do que é conduzir um carro por uma rodovia, é angustiante vivenciar tal situação. Procurei aparentar calma e até mesmo não estar percebendo as atitudes dele e, então percebi que ele passou a exagerar ainda mais no ritual de procurar pela garrafa e sorver a água enquanto aumentava a velocidade do carro. Foi aí que tive certeza de que a intenção dele era de fato me aterrorizar. Havia um certo prazer no que fazia. Veio uma pergunta que fiz a mim mesmo: por que ele estava fazendo aquilo, sabendo que estava expondo a um risco desnecessário as vidas de nós dois?

A resposta, creio eu, pode ser a mesma para indagações sobre outras atitudes de exposição a riscos desnecessários: um desejo de morte, ainda que inconsciente, por parte de quem pratica tal ação. Quem assim age são pessoas que se envolvem em aventuras cujo prazer não está em vencer um desafio, mas no risco que se corre; é uma atitude suicida não assumida: se se concretizar a tragédia previsível, já estava nos propósitos do aventureiro, se não se concretizar, valeu o prazer de ter estado perto da morte – ou perto de se ferir, o que seria , em tese, também uma forma de morte parcial.

Quantas pessoas desse tipo encontramos ao nosso redor? Em todos os ambientes que freqüentamos nós as encontramos, porém, é no trânsito que elas se revelam com maior facilidade – e como o trânsito, seja urbano ou rodoviário, a cada dia fica mais perigoso, torna-se um campo fértil para os suicidas em potencial. Cabe lembrar que um suicida em potencial é também um homicida em potencial, dentro daquele pensamento que quem mata também morre um pouco em função das conseqüências do seu ato: eis um dos fatores que tornam esses motoristas ainda mais perigosos, pois o prazer deles está na exposição a riscos de suas próprias vidas e da vida de outros.