Uma mulher atemporal

As vaquejadas foram parte dos primeiros lampejos emocionais de minha vida sensorial: o vento no rosto, o rebumbar dos cascos do cavalo e do gado ecoando nos campos, o cheiro de terra molhada no inverno, o canto dos vaqueiros explodindo no ar, o ritmo do cavalo sob as cadeiras.

Aos sete anos, quando eu já me mudara para o Rio de Janeiro, uma reviravolta traumática me atingiu. Eu deixava atrás a liberdade dos campos e a vertigem das vaquejadas, a correria prá receber as primeiras gotas da chuva depois da seca... Agora era estar engaiolada em um apartamento, a mais perfeita metáfora da nostalgia do pássaro na agonia do confinamento. O centro do prazer se deslocou para o estudo e os livros, onde eu encontrava um bocado daquele silêncio povoado de imagens e sons selvagens espalhados ao vento dos campos.

A carga atávica da menina em seu cavalo, campeando o gado e buscando os flagrantes dos passarinhos, viria a ser revelada pela história da ancestral Úrsula. Quando meu pai contava essa história, meus olhos brilhavam. Havia um pronto estreitamento com aquela figura jacente para além dos túmulos, lá onde se vive para sempre, quiçá onde se volta para assombrar ou enternecer os dias dos viventes. Úrsula não me assombrava nem enternecia: ela me fascinava.

A moça Úrsula que, filha única, administrava a fazenda, latigava os escravos ou os acariciava? Os cabelos seriam loiros?, doirados e luzentes nas fantasias de fulgurantes Eldorados? e os guardiães do Eldorado seriam seduzidos pelo contraste com sua pele morena? Morena do cotidiano rural de lida e sol, cuja força de radiação e bronzeamento só no Piauí se compreende.

Úrsula então fora prometida em casamento para um moço condizente com sua posição social; ele vinha da Bahia. Mas a cor da pele da prometida, fustigada pelo sol, não condizia com a candura exigida das moças de sua estirpe. Era preciso uma quarentena para alvejar a tez da brava amazonas. Aquela capaz de, com a garrucha na cintura, enfrentar os perigos da cavalgada à Bahia para a negociação das rezes. Então a valente foi enclausurada, as cortinas cerradas sobre sua inquietude e vigor incomuns, sua mucama encarregada de servir-lhe as refeições, os banhos de leite providenciados para suavizar sua pele curtida pelo Sol do Equador. Lá de onde estava ela me acenava e dizia: "não vês?, não é somente tu que experimentas o jugo da gaiola aí na cidade grande; eu o experimentei em minha própria alcova". A bela estava sendo constrangida a encarnar seu papel de dama nos salões, para demonstrar ser dotada de brio também para as delicadezas de sua posição social.

O prometido, enquanto aguardava o dia do jantar em que seria apresentado a sua noiva, circulava por Oeiras, no barbeiro, na Igreja, na praça, no bar. E a mucama da bela já assuntava para bater a língua nos dentes e contar a sua ama as novidades que as mulheres apreciam: como ele era, era garboso? Imagino que não. O motivo? Adiante veremos. Os homens, ao saber que se tratava do prometido de Dona Úrsula, se punham a tecer comentários; certamente a valentia da noiva não era comum e os comentários o manifestavam: "ah! casar com D. Úrsula? Cuidado, hem? ela vai mandar em vosmicê!"

No dia do esperado jantar de apresentação, a mucama passava diante do barbeiro, onde o noivo se punha apresentável, justamente na hora em que este perdia a paciência e respondia às provocações com jactância: "Não me conhecem! Mulher nenhuma manda em mim, eu vou pegar a valentona pelos cabelos e dar-lhe uma boa sova para mostrar quem dá as ordens", e outros banais blá-blá-blás desse tipo. A nêga linguaruda irrompeu no quarto da ama com sua roupa de gala para o famigerado jantar. E logo lhe contou tudo, detalhadamente, o que vira e ouvira do noivo. A amazonas levantou num rompante, escancarou as cortinas e sentiu novamente os afagos do sol poente, saiu do jeito que tava, uma selvagem em trajes de dormir, furiosa. Num assalto adentrou a sala, colocou o dedo em riste bem no nariz do noivo assustado e desfiou um rosário de impropérios. Assim que, adeus casamento... Eu imagino que o noivo não exibia um certo vigor de virilidade que fosse capaz de envolver aquela mulher excepcional. E que ela já sabia disso pela descrição da mucama. Já para a moça era um acinte à sua largueza de vitalidade o ser compelida a casar com um desconhecido, ainda que fosse costume de seu tempo. Mas, e se, além disso, o prometido não prometesse algum mínimo de afinidade e felicidade?

Assim ruíram as chances de Úrsula para subir ao altar. Ela morreu "moça velha", talvez bem velha mas não tão "moça". Segundo meu pai, deixou um testamento em que dividia os bens entre seus filhos, especialmente as terras; e para alguns de seus jagunços e fiéis serviçais, distribuía bens móveis com generosidade. A poderosa amazonas viveu sua vida nas amplidões dos campos piauienses, onde o gado africano prosperava abundante. O seu isolamento foi povoado de quais amores? Um rústico a saciou de carícias e lhe fez filhos naquele isolamento agreste? Quantos amantes se deu a bela ao desfrute? Assim eu me perguntava, enquanto no atavismo de meus devaneios, tecia a teia de um destino.

No entanto, eu não estou sozinha. Tenho a sombra de Úrsula ao pé de meu leito, quando sonho ou apenas me deito. E digo-lhes que é bela, tem cabelos de oiro, que inspiram desvarios de Eldorado; e uma pele núbia que irradia um tal ardor, que só mesmo aquele Sol do Equador.