Carrinho de mão

Comecei a trabalhar no dia 1º de outubro de 1.976. Esse foi o meu primeiro emprego, embora antes já tivesse trabalhado vendendo frutas e picolé. O trabalho era de office-boy no condomínio em que meu tio era síndico. Não tinha muito trabalho. Eu só ia à tarde, mas a atividade me deu condições de adquirir minha bicicleta, em seis prestações que tomaram quase todo o meu “meio salário mínimo” mensal.





- pobreza

- sonhos

- heróis



Hoje, analisando minhas memórias, vejo aquela época como se eu conduzisse um carrinho de mão. Não tinha muita carga pra levar, não tinha motor e nem conhecimentos que me permitissem qualquer debate. Só uma vontade enorme de aprender e ser alguém. Na bagagem levava: minha pobreza, meus sonhos e meus heróis. Estes eram meus irmãos mais velhos, que eu admirava como ninguém. Para mim eles podiam tudo. Eles trabalhavam e sabiam enfrentar o mundo. Eram grandes e fortes e eu tinha muito orgulho em ser o irmão mais novo deles.





- ônibus



Depois de muito viver, lutar, trabalhar e aprender, ganhar e perder, hoje eu me vejo como se conduzisse um ônibus. Um veículo grande e pesado, que leva muita bagagem e muita gente, mas não deixou de carregar a mesma carga que levava o carrinho de mão:



- pobreza

- sonhos

- heróis



Claro que minha situação financeira não tem comparação com aquela de 1976. Minha bicicleta virou um automóvel de luxo, meus sonhos são bem mais ambiciosos, e meus heróis, de uma forma ou de outra, já andaram no meu ônibus.





- primeiros sinais

- perda da qualidade

- ritmo



Mas 25 anos se passaram. Sinto que não sou o mesmo. Não tenho a mesma disposição, o mesmo pique. Meu ritmo diminuiu e isso não foi compensado por um ganho de qualidade.



- falta agregar acessórios (especialização, pós, mestrado...)

- fadiga (fuga)





Ao contrário. Deixei de me atualizar profissionalmente. Deixei de ser atrevido. Deixei de me aventurar profissionalmente. Parece que o medo de errar impede que eu me imponha novos desafios. Essa fadiga no “velho ônibus” faz ver que ele não é mais o mesmo. Que suas viagens já não são tão tranqüilas e nem tão longas. Os bancos já não são confortáveis e a segurança que ele transmitia aos passageiros parece estar abalada.





- desembarcaram passageiros importantes

- o homem sensato

- o marido

- o orgulho

- super-homem desceu no ultimo ponto;





- mas a viagem não acabou

- ainda tem uma carga preciosa

- as filhas

- os “filhos de coração” Simone e Marco

- e muita gente que depende direta ou indiretamente;

- clientes que depositaram sua sorte;

- não dá pra parar;

- tenho que continuar até que minha carga preciosa esteja segura;

- por isso a consciência me acusa;



- Simone e Marco ainda não são ônibus, mas já não são carrinho de mão;

- não devem se contentar com o ritmo do ônibus;



- eles podem (e precisam) andar mais rápido;

- precisam abrir caminho;

- aproveitar a capacidade de agregação do ônibus;

- levar os passageiros mais apressados ao seu destino;



- são como táxis, mas agregados ao velho ônibus;



- esta semana enxerguei no último banco um passageiro que ainda não tinha percebido, talvez porque ele é assim mesmo: silencioso. Mas ele estava lá. Eu vi. E sei que vai estar lá, atento, até o fim da viagem. Não vai interferir nem fazer perguntas, muito menos me indicar a direção. E ao final vai se aproximar de mim e dizer: "Já não há mais tempo. Encoste aqui mesmo e me acompanhe."

31/01/2002