BARBA AZUL

O que faziam as crianças de antigamente, à noite, quando não havia televisão? Com que elas se divertiam? Eu não sei das outras, mas sei que eu gostava de ler ou ouvir histórias contadas por minha avó paterna ou por minha mãe.

Em minha casa havia muitos livros e eu os devorava, sobretudo os de histórias como as da “Branca de Neve e os sete anões”, a “Bela Adormecida”, "Chapeuzinho Vermelho", "A Gata Borralheira... Já naquela época eu ficava encafifada com a perversidade de alguns personagens: A fada que não fora convidada para o batizado da Bela Adormecida deu um jeito da mocinha furar o dedo num fuso e cair em um sono quase eterno. A madrasta da Branca de Neve era tão perversa e sangüinária que queria ver em suas mãos, nada mais nada menos, que o coração da pobre menina. A mãe da Chapeuzinho era uma louca desvairada! Onde já se viu uma mulher adulta mandar uma menina levar doces para a sua mãe, mesmo sabendo que na floresta havia um lobo? Só faltava a história dizer que a vovó era diabética! Já a madrasta e as meio irmãs da Gata Borralheira me davam ânsias assassinas, de tão pestes que elas eram com a pobrezinha que se pocava no borralho.

Uma das histórias que me causava pavor era a do Barba Azul, escrita por Charles Perrault. Se você nunca a leu, passo agora, à minha moda, a contá-la para você:

“Era uma vez um cara feio e podre de rico. A mulherada o achava medonho e tinha medo dele por dois motivos: o primeiro era que o sujeito usava uma assustadora barba azul, o segundo é que o danado já se casara e enviuvara sete vezes e ninguém sabia do paradeiro das falecidas.

Casado sete vezes? Como assim, o cara não era feio e causava medo? Era, mas tinha “trocentas” fazendas e um castelo com 100 quartos. Você já viu rico feio ficar sem casar? As interesseiras de plantão já existiam naquele tempo, meu anjo!

Prossigamos com a história:Uma das vizinhas do Barba Azul tinha duas filhas lindonas e dois filhos valentes. O feioso pediu-lhe uma delas em casamento, deixando a escolha à vontade materna. É claro que nenhuma das duas o quis não só pelos motivos expostos, mas, sobretudo, porque elas não estavam passando fome.

Muito sabidamente, o Barba Azul convidou a velha e as suas filhotas para passarem uma semana em uma de suas fazendas. O período foi marcado por muita festa, muita comida boa, muito papo para o ar e muita ostentação.

Não deu outra; ao término da temporada a caçulinha já estava caidinha por ele e começou achá-lo “Um charme!” e a chamá-lo de “Meu Barbinha!”

Comunicou isso à mãe, que, aliás, ficou muito feliz. Afinal, já imaginou que maravilha ser sogra de um sujeito que tem um castelo com 100 quartos? A cerimônia de casamento marcou pela ostentação de tiaras, anéis, braceletes e colares de diamantes. A festa durou uma semana, e foram convidados e hospedados todos os reis das redondezas.

De volta à vida normal, o casal foi morar no tal castelo. Certo dia, tendo de viajar, o Barba entregou um molho com 100 chaves para a sonsinha e disse-lhe: “Você pode entrar em todos os quartos, menos em um, viu?” (Isso me lembra a conversa de Deus com Adão, mas... prossigamos.)

Para que ele foi falar isso?! Foi só virar as costas e ela resolveu abrir um a um todos os quartos. Um deles estava fedido, repleto de poças de sangue coalhado, onde se refletiam os cadáveres das esposas desaparecidas. Horrorizada, a jovem esposa começou a tremer, a chave do quarto caiu de suas mãos sobre uma poça de sangue (Se o sangue estava vivo? Faz pergunta difícil, não!).

O certo é que a doidinha saiu correndo, foi tomar banho, passar perfume e lavar a chave ensangüentada. Qual o quê! O sangue da chave não saía e a denunciaria ao Barba quando ele retornasse.

Dito e feito! Quanto o cara chegou a casa, ele virou bicho, quis puxar a mulher pelos cabelos e levá-la para o quarto dos horrores para lá sacrificá-la também.

Ela conseguiu dar uma engambelada nele pedindo para rezar antes de morrer, mas, na verdade, ela torcia para que seus irmãos valentes aparecessem e a salvassem. Foi isso mesmo que aconteceu: os irmãos chegaram, espetaram suas espadas no Barba e a sonsinha ficou viúva e rica.”

“Entrou pelo pé do pato, saiu pelo pé do pinto, quem quiser que conte cinco!”

Segundo meu querido escritor Rubem Alves, em seu livro “Cenas da Vida (1997, pp. 59-60): “O castelo de cem quartos é uma metáfora do corpo humano. Noventa e nove quartos são abertos à visitação do público. Ali, com todos os visitantes estranhos, tudo são sorrisos e conversa cordial. Mas o último quarto é o quarto que odiamos: ali mora nossa parte monstruosa. Gostaríamos de nunca visitá-lo e de perder a sua chave”. Ainda segundo esse autor, “nós não queremos ver o que está lá dentro: nós mesmos - o Retrato de Dorian Gray -, nossa face deformada, horrenda monstruosa.”

Acho que você, meu leitor, de alguma forma conhece o meu “quarto dos horrores”, porque, diferentemente da maioria das pessoas, eu permito que você o vislumbre um pouco, aqui, todo domingo.

Talvez por isso, eu tenha tanta facilidade para farejar a covardia, a dissimulação e a falsidade contidas nos “quartos podres” alheios. Uma vez descobertos, minha atitude muda, denuncia que eu tenho a chave e, então, eu passo a correr sérios perigos.

Nessas horas, diferentemente da sonsinha da história, eu não aguardo irmãos valentões. Eu simplesmente rezo e rogo que Jesus me salve da fúria dos Barbas Azuis, que não me perdoam por eu ter descoberto quais são os fétidos conteúdos de seus “quartos de horrores” .



 

NORMA ASTRÉA
Enviado por NORMA ASTRÉA em 17/06/2008
Reeditado em 12/09/2013
Código do texto: T1037907
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