A BICICLETA ROSA

Éramos umas 12 meninas entre 08 e 10 anos, naquela rua descalça, paralela à rodovia Carlos Lindemberg, também descalça, na Glória, em Vila Velha.

Pela manhã, íamos todas para chácara de Dª  Matilde, mãe de algumas amigas. Em grupo de 04, formávamos 03 famílias. Cada uma escolhia uma árvore para ser sua casa e decidia quem faria os papéis de pai, mãe e filhos. Eu, quase sempre, era a mãe,  pois já tinha um “filho” caçula: meu irmão Neolúcio, o único menino que aceitávamos em nossos “cozinhadinhos”.

Assim, as manhãs eram recheadas de diálogos como:
- Rosângela, minha filha, varre nossa “casa” (quase sempre com uma vassoura feita de mato)!
- Gracinha ( meu marido ), vai pegar lenha (gravetos) para eu fazer o “almoço”!
- Fatinha (minha filha mais velha), me ajuda a fazer as compras!

E “comprávamos” folhas de manga, carambola, cajá, manga verde, sementes de fava, urucum... De volta à “casa”, Rosângela já a tinha varrido, Gracinha já estava acendendo a fogueirinha entre pedras e nós levávamos ao fogo o velho papeiro de Neolúcio, lotado de lama, folhas e sementes. Pronto o “cozinhado” e temperado com areia, fingíamos que o comíamos e fazíamos caras, inclusive o Neo, indicando que a “comida” estava deliciosa.

Até que visitássemos todas as “casas” e provássemos todos os quitutes, dava a hora do radialista Castelo Mendonça iniciar seu programa com a música: “Cidade sol com o céu sempre azul, tu és um sonho de luz norte a sul...” e nos lembrar de que era hora de tomar banho, vestir as saias vermelhas de pregas, as blusas brancas com tirinhas que indicavam nossas séries escolares, sobre as gravatinhas vermelhas, e pegar a linha do bonde, rumo ao Grupo Escolar “Naydes Brandão”, a escola que fica em frente à Chocolates Garoto.

Começava, então, a tortura: estudar sentindo aromas dos chocolates que não se podia comprar.

Ao entardecer, de volta à casa, sem televisão, juntávamo-nos em frente à chácara para cantar rodas (sei dezenas delas, até hoje), brincar de todos os piques ou de concurso de calouros, imitando a Emilinha ou a Ângela Maria (Gracinha e Fatinha eram perfeitas), cantando na  Rádio Nacional.

Numa manhã percebemos que a casa da esquina fora ocupada por uma família que tinha uma menina da nossa idade, rosada, de franjinha, cabelos longos e claros, presos no alto da cabeça, formando um lindo rabo de cavalo.

No dia das crianças, eu não ganhei a caixinha de lápis de 06 cores que eu tanto queria. Aliás, nenhuma de nós recebeu nada, exceto a “rosadinha”. Ela ganhou uma bicicleta cor de rosa (acho que foi para combinar com suas bochechas) que pedalava com destreza, esvoaçando os cabelos sedosos (muito diferentes dos nossos), diante de nossa pasmaceira e desconsolo.

Fatinha, muito pra frente, mesmo sem saber pedalar, foi pedir para dar uma voltinha. De longe, vimos o nariz rosado empinar-se e o rabo de cavalo voltear-se para direita e esquerda, num gesto claro de “não” categórico. Minha amiguinha voltou cabisbaixa, sentou-se ao meu lado, dobrou os joelhos, cobriu o rosto com os braços e chorou. Comovida e frustrada, quis chorar com e por ela, mas só consegui balbuciar:
- Chora não, Fatinha, quando a bicicleta estiver velha, ela nos deixará andar!

Assim foi! Todas nós aprendemos a nos equilibrar sobre duas rodas, pedalando aquela bicicleta. Eu nunca chorei quando os joelhos se esfolavam no chão, porque a cada queda esvanecia-se o orgulho da “rosadinha”, a tinta da bicicleta saía, envelhecendo-a e tornando-a mais nossa.

Ao longo de minha vida tenho encontrado a “rosadinha” em outros rostos adultos. Nessas ocasiões eu apenas penso: você TEM uma bicicleta cor de rosa, que o tempo vai se encarregar de carcomer, mas eu não tenho mais nenhuma paciência para esperar babaca amadurecer.