DESENHANDO MINHAS PAISAGENS



           São dez e trinta, eu já tomei um café instantâneo, mas lentamente.  Marquei um horário para um exame qualquer, agora estou lendo a minha página,  olhei a caixa de correspondência, não há recados. O vizinho da frente acordou inspirado novamente e está a escutar música no rádio para toda a vizinhança ouvir.  É um indião meio balofo, e seus gritos ao falar sempre me dão a impressão de que está a brigar e a xingar, e olha que faz bons anos que ele mora aí.             
         A minha rua atravessa a cidade e eu moro na ponta , quase na BR alguma coisa, já beirando a divisa com a cidadezinha ao lado. E na o outra ponta da Marechal, subindo um morro, uns dois quilômetros da minha casa, localiza-se a decadente região das boates onde a velha Apolo 11 teve seus dias de glória, quando, por incrível que pareça, no auge do sucesso, no final dos anos setenta, criou-se a noite reservada pra casais, quando os homens levariam suas mulheres para curtir a recente e luxuosa decoração. Coisa que eu nunca confirmei pessoalmente.
          Então, a minha rua, por ser um trajeto de entrada e saída, apesar de fazer parte de um chamado bairro Jardim do Prado, apresenta uma miscelânea de arquiteturas, assuntos e outros quetais. Eu gosto, pois morar em um bairro burguês me deixaria completamente entediada. Eu tive uma vizinha que lia cartas de tarô e ganhou muito, mas muito dinheiro. Logo abaixo, num intrincado conjunto feito de remendos conforme o momento exigia, está um centro de cultos africanos, e a gente chama a todos dali, pai e filhos, os Macumba, sendo que o velho tem o diferenciado apelido de Macumbão. Imaginem que eu tenho sido a única adulta de verdade no meio desta gente aqui de casa. Como dizia a minha sogra, "eu não gosto de falar com essas velhas que só falam em doença e religião." As velhas de hoje mudaram um pouco, mas eu sou ainda mais chata que minha sogra, talvez por isso fale com tão pouca gente. E, se não for contrariada de forma ostensiva, passarei quase despercebida. Porque me torno um tanto irracional, sob pressão. 
              Acompanho há quase trinta anos os acontecimentos desta rua, excetuando-se um intervalo em que morei em minha cidade natal. Quando meus filhos eram pequenos, havia aqui defronte apenas campos, taquareiras e capim alto. Aí eu atravessava a rua com eles, que eram três, e fazíamos piquenique. Levávamos coisas pra comer, um cobertor velho aonde sentar e estava feita a festa. Mais abaixo, onde hoje há muitas casas, havia o campinho do Papai Noel, que era um velhinho de pele avermelhada, cabelos e barbas brancas, muito sorridente com seus apertados olhos azuis. Ele tinha umas duas vacas e nos vendia leite. Certa feita, apareceram vários nomes escritos no seu muro onde acima se lia: "Senhores devedores de leite, calaveiras do
cimintério" Isso fez a diversão de toda a vizinhança até que ninguém mais reparou no tal letreiro. Se o pagaram, não fiquei sabendo. Também circulava por aqui um homem muito mirrado, de pele escura, que tinha o sugestivo apelido de Bebé. Certa feita, era sábado de manhã e surge o Bebé lomba abaixo puxando um porco muito gordo. Atrás vinha sua mulher, que era bem mais alta e um tanto reforçada. O porco empacou bem defronte à minha casa e ficaram os dois a discutir e ela quase o agrediu, ao marido, é claro. Ficaram por uns instantes naquele vaivém quando surgiu um terceiro personagem que se foi rumo ao centro. Algum tempo depois, aparece dentro de um táxi com intenção previsível. O taxista, logicamente não aceitou levar aquele inusitado passageiro. O que se seguiu já não lembro mas ficou pra sempre entre nós a lembrança de Bebé e seu porco teimoso.
             Estes resquícios de uma vida rural que ainda sobrevivia nos arredores, estão completamente apagados. Em seu lugar, agora temos as vilas que crescem desordenadamente em espaços muito reduzidos. O pequeno armazém  já foi trocado há anos por um supermercado. Acima, construiu-se o prédio de uma dessas novas igrejas que grassam por aí. 
            Mas estamos aqui estrategicamente ao pé da serra, com três acessos por lindos caminhos, um levando a Gramado e Canela, outro a São Francisco de Paula e finalmente o que leva a Boa Esperança, um povoado construído sobre um sobe e desce de elevações, a uma grande altitude, sem nenhum caminho plano. E onde há vinícolas que produzem bom vinho, paisagens com belos vinhedos, um restaurante com mesas compridas e bancos, onde é servido um almoço muito especial por doze reais. Todos esses locais ficam a quarenta quilômetros daqui, sempre subindo. 
             E nós brincamos quando se fala na elevação do nível do mar devido ao degelo nos pólos, dizendo que iremos todos lá pra cima, logo que o perigo ficar iminente. Mas parece que tal assunto saiu um pouco da pauta. E sem essas ameaças distantes, nos voltamos para as nossas tragédias particulares, que acontecem sob os olhos coniventes e imparciais de paredes, ruas e paisagens. E muitas vezes, acordando devagar, com um sonho bastante vívido ainda, tenho a nítida impressão de estar morrendo de uma vida que existe paralela a esta. Concluo então, que o sono não é como já foi dito, o irmão da morte. Ele só intermedeia diferentes formas alucinadas de percepção.
           Ouço as vozes do meu vizinho da frente, em grande atividade. E então invento esta realidade em um dia que o calendário marca como sábado, dia 14 de junho de 2008. Logo dormirei outras paisagens...
tania orsi vargas
Enviado por tania orsi vargas em 14/06/2008
Reeditado em 14/06/2008
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