ABUNDÂNCIA e DESPERDÍCIO - Berenice Heringer

Que o Brasil é um paraíso Pero Vaz de Caminha já afimara enfaticamente em sua famosa Carta nos anos 1500. O quinto país do mundo em extensão territorial, o maior rio em volume dágua, a mais verde e cobiçada floresta do globo. Pois é, tudo isto e muito mais é o território, o país, a nação. E o povo? Não podemos ter muito orgulho de nossas origens étnicas, culturais e a imposição da colonização. Portugueses, índios, negros, depois um caldeirão...

É o que o historiador Eduardo Bueno batiza de náufragos, traficantes e degredados.

Mas o pior mesmo foi o período da escravidão. Literalmente tal época foi a do vidão para alguns e um escracho para uma multidão. Os primeiros escravos foram trazidos para cá no ano de 1538. Em 1865 foi proibida por lei a traficância. Há, portanto, 470 anos de negros e negritude aqui. De 1538 até 1865, 327 anos de plena atividade dos terríveis navio negreiros, os encarniçados, ambiciosos e insaciáveis mercadores de corpos e braços arrancados de suas selvas, aldeias e tribos da mãe África, escorraçados e entalados naqueles porões infectos. Castro Alves, o Condoreiro Poeta, cantou a decadência e a vergonha em seus inigualáveis versos, com revolta e espanto. E nós lemos e depois nos esquecemos. Encantamo-nos com a poética e nos olvidamos da ética.

Nesse período foram trazidos para cá cerca de 15 milhões de negros para serem escravizados. Esta é a nossa nódoa indelével, a nossa vergonha que não temos onde esconder. Todos com u'a mão na frente e a outra atrás e a cara descorada pela afronta.

Pois é, por estas e outras mais é que o Brasil continua com os dois pés na senzala. Nós...

O sociólogo positivista pernambucano Gilberto Freyre, autor de Casa Grande & Senzala, não sei se deu mais ênfase à primeira em detrimento da segunda. Acho que podemos excluir as casas grandes, há pouquíssimas mansões em nosso território. E dar maior realce às Senzalas que proliferam e perduram. Vejam os favelões e amontoados nas periferias. Não estou falando de negros, mas de escravidão, povão, marginalizados, antes minorias, agora, estatisticamente, maioria predominante.

Lá na Espanha os escravos eram os mouros, não necessariamente de pele negra, mas alienígenas de outras plagas que foram submetidos à diáspora pela tirania e pela força. Por isso a expressão popular: trabalhar como um mouro. Também a Moura Torta dos contos de fada terroríficos. Não depende da etnia ou da cor da pele, mas das condições de subjugação, obrigação, prisão que são impostas pelos dominantes aos dominados. O colonizador ao colonizado. O feitor ao trabalhador. O opressor ao oprimido.

Segundo o IBGE, o percentual de indivíduos negros, mulatos e pardos já ultrapassa aqui o contingente dos de raça branca. Os nossos problemas são todos oriundos desses 327 anos de mando e obediência. Os maus hábitos, o jeitinho brasileiro, o talento para mentir, negar e omitir para salvar a pele, vem desses tempos sombrios das mucamas, sinhazinhas, pretos-forros, filhos bastardos dos sinhozinhos, meninas violentadas, seduzidas, abusadas...

A comida farta, a abundância, no sentido literal e figurado, as rígidas regras impostas pelos sanhores, as iguarias escondidas e proibidas aos escravos, mesmo aos da cozinha e despensa. Por isso a imposição do medo, do tabu, da superstição tipo "manga com leite é veneno, os alimentos negados, alguns tinham de comer restos destinados aos porcos, pois o que não mata, engorda. Aí, nessa escola, aprendeu-se a mentir, escamotear, camuflar, enrolar num lero-lero e salvar o lombo e a vida. Ajuntamentos, promiscuidade, escassez na fartura. Eis o povo brasileiro: estraga o que tem, não quer comer banana, comida de macaco. Eis a nossa herança, os costumes, o" carma", que os 38 anos sem escravidão (1500-1538) não apagam. As causas continuam engendrando as conseqüências. VV. 06-06-08

Berenice Heringer
Enviado por Berenice Heringer em 12/06/2008
Código do texto: T1031371