Estar em São Chico
ESTAR EM SÃO CHICO
(crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 11.06.2008)
Joinville, SC - Estar em São Francisco do Sul, simplesmente, numa tarde luminosa e ensolarada de domingo, num Outono qualquer. Estar em São Francisco na companhia da mulher amada e de amigos do coração, em um restaurante, vendo o mar calmo da Babitonga em maré baixa, muito baixa, acariciar quase tímido as bordas da cidade que se deita junto a ele. Estar em São Chico como se estivesse em uma pacata cidade colonial do início do século passado, em meio a uma arquitetura colorida limitada pelo verde vibrante e denso que cobre os morros em volta. Estar em São Chico lembra o que poderia ser estar em Florianópolis - melhor, na Vila de Nossa Senhora do Desterro - se a cidade da primeira metade do século XX não houvesse sido destruída com tanta vileza e cobiça para dar lugar a um amontoado de edifícios em nada diferentes de tudo o que se vê em qualquer lugar do planeta.
Estar em São Chico, simplesmente, e deixar-se levar ao longo do tempo pelo som orquestrado, naquele cenário esfuziante, de um chope artesanal gelado, feito em Joinville, e uma pescada à milanesa preparada ali mesmo, na beira do mar, junto aos barcos que chegam e saem, chegam e saem, chegam e saem como marolas da mansa baía. Estar em São Francisco e observar, preguiçosamente, as pessoas que, distraídas, caminham de mãos dadas pelas calçadas centenárias de pedra, acomodam-se banhadas pelo sol nos bancos voltados para as águas calmas, sentam-se na comprida escada de quatro degraus que leva ao remanso em que o mar praticamente se perde na areia (onde aportam humildes e carregados os barcos de pescador, as pequenas canoas de madeira, talvez ainda de garapuvu), conversam em línguas estrangeiras pelos ancoradouros próximos, fotografam-se sorridentes e desprovidas de relógios, isto é, de pressas, pressões e compromissos, pela larga passarela de madeira que ladeia o mercado municipal e, contígua, uma ampla praça de paralelepípedos vazia que as pessoas usam para deixar seus carros - que ali deveriam ser proibidos, deveria de ser necessário chegar a São Francisco do Sul apenas de barco ou de trenzinho de rodas de borracha, muitos deles, vários deles, levando as pessoas dos seus carros e ônibus distantes até aquele resto de civilização.
Estar em São Chico, mesmo que quieto em um canto, ainda que sossegado em uma mesa de restaurante, é ver a vida de frente, é viver a vida - não ver a vida passar, geralmente passar correndo, nos legando a funda e incômoda impressão de que ela está nos deixando para trás, de que ficamos cada vez mais irremediavelmente para trás. Estar em São Francisco é dar um pacote de bolachas a uns meninos guaranis que pedem dinheiro (mas não esmola) porque foram instruídos que é preciso inserir-se nessa coisa grande e "maravilhosa", movida a dinheiro, que se chama mercado; é comprar (ou não) os cestos tricolores trançados a mão com fibras vegetais que as índias guaranis expõem na calçada (mas pouco oferecem) enquanto conversam entre si, porque também a elas foi dito que só o dinheiro as faz ingressar no mercado, e que é fundamental entrar no mercado e, pois, ter dinheiro para tanto (e tão pouco). Estar em São Francisco do Sul, que tem porto, é surpreender dois homens de preto saindo em um bote inflável preto no qual se lêem na lateral, bem grandes, as palavras Polícia Federal.
Estar em São Chico assim é doído porque evoca cruelmente a certeza, a consciência, de que se poderia estar em Florianópolis assim se a cidade houvesse contado com homens e mulheres que a tivessem preservado até mesmo para evitar que ela se tornasse o inferno deselegante e congestionado em que virou.
(Amilcar Neves é escritor e autor, entre outros, do livro "Movimentos Automáticos", novela)