ARISTIDES E MARGARIDA

Se eu fosse descrever o dia que acaba de nascer, diria que o sol não surgiu, que o azul do céu não está mesclado de nuvens brancas e que os primeiros pingos d’água começaram a martelar a vidraça da janela do meu quarto.

E eu, que não sou supersticiosa, surpreendi-me levantando da cama com o pé direito. Pelo sim ou pelo não, só estava querendo que o dia transcorresse sem maiores sobressaltos, isto porque tenho andado me sentindo triste sem saber a causa, aliás, este estado de coisas vem acontecendo com freqüência .Fazer o quê? Análise, de novo!? Ah, deixa pra lá!

Enquanto o banzo não passa, vou sentar e tentar medir pulo de pulga e raciocinar sobre por onde o grilo canta: se pela boca ou pela rabadilha (coisas de Aristófanes sobre Sócrates em “As Nuvens”)

Daqui da cadeira onde me encontro, os meus olhos saudosos vasculham o passado, isto porque à minha frente, cobrindo uma mesinha, está posta uma toalha de linho branco, cuidadosamente bordada, relíquia de meu enxoval, que dita mais de vinte anos.

Margarida era o nome da moça bordadeira, artesã da peça admirada e que no ponto cruz na barra das saias das meninas da época ninguém a superava. Por onde andará a Margarida..., que morava na mesma rua que eu, e que, a pretexto de qualquer coisa, costumava. ir a nossa casa sempre na parte da tarde todos os dias, justamente na hora em que era servido um café, acompanhado de queijo do sertão, pão saído do forno caseiro, manteiga fresca, bolo de fubá, tapioca e bolacha japonesa . Ela chegava de mansinho, olhar pidão e logo era convidada para participar do café, o que fazia com certa gula diante do posto sobre a mesa. Desconfio até, que aquela refeição era a única do dia da moça Margarida, filha que era com mais seis rebentos de dona Santinha, que fazia jus ao nome e estava sempre vestida de preto por desconfiança da sua condição de casada, pois há dez anos do marido nada sabia. Tinha ele viajado para São Paulo deixando como certo, logo que empregado estivesse, buscar a família. Não cumpriu a promessa e nem notícias mandou. E cá ficou dona Santinha e sua filharada, do seu Manoel pedreiro, apenas um retrato desbotado na parede.

Continuando a falar sobre Margarida, com quem tinha os meus dedos de prosa e dos seus préstimos, minha mãe sempre carecia, para acrescentar que ela também sonhava e o que mais queria era casar, e casar bem, por esse caminho acreditava livrar-se da barriga vazia; da cara triste da mãe; do choro de fome dos menorzinhos, enfim, dos aperreios de toda sorte que infelicitavam a vida da família. Dizia que, alcançando o bem bom não seria indiferente aos seus, daria ajuda para todos. O difícil era achar por aquelas bandas quem por ela mostrasse interesse dentro dos padrões exigidos.

Diante dessa dificuldade valeu-se a Margarida de um anúncio contido numa dessas revistas femininas, na seção “correio sentimental”. Lá estava escrito: “Jovem fazendeiro, bem afeiçoado, moreno, cabelos pretos e lisos, olhos verdes, um metro e setenta , situação financeira equilibrada, deseja corresponder-se com moça de boa família, instruída, de preferência loura de olhos verdes, idade máxima dezoito anos. Para fins matrimoniais”.

Margarida, que não era bonita, não era loura, não tinha mais dezoito anos, já estava beirando os trinta, apressou-se em responder ao anúncio, o que foi feito por meu intermédio; pois mal sabia ela escrever o nome. A mando da missivista, afirmei que a distinta possuía as características e as qualidades exigidas. Não demorou muito, chegou ela em minha casa, toda esbaforida, trazendo para ser lida, uma carta. Era do Aristides, assim chamava-se o pretendente., que exigia foto. De pronto, por ordem da Margarida, escrevi dizendo que fosse ele o primeiro a enviar. E nesse jogo de empurra ficou muito tempo, sem que um atendesse ao outro.

Carta pra lá, carta pra cá, e nesse vai-e-vem Margarida se entretinha. O tempo foi passando e as cartas foram escasseando. Um certo dia um fato chamou a atenção de Margarida, era a passagem, todas as tardes por sua calçada, e lá se ia uma semana, de um homem de seus trinta e seis anos, de estatura baixa, moreno, cabelos crespos, usava bigode e barbicha, e lançava olhares curiosos casa adentro sempre que se via diante da porta. Ia e vinha o dito homem.. Margarida chegou-se à janela e numa dessas passagens, sem quê nem por quê, saiu-se com esta: Aristides? Ele de pronto indagou:: “ e tu é Margarida?”

Nem se casaram. O Aristides foi se chegando e logo, logo socou-se dentro da casa de Margarida e a fez barriguda.

Margarida continuou bordando, bordando, bordando para sustentar mais duas bocas.

Zélia Maria Freire
Enviado por Zélia Maria Freire em 11/06/2008
Reeditado em 11/06/2008
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