Memória do Cotidiano - Fragmento #1

As vezes preciso cuspir palavras em uma folha digital qualquer para evitar que a loucura tome conta de meu libido. Sou paranóico e compulsivo em relação a quão repressora essa cidade consegue ser. Acho que o maior problema é que quando eu quero algo, por mais bobo que seja, uma bebida, um burrito ou uma ópera, eu quero muito. Um mimo de homem compulsivo e paranóico.

A cidade é um grande mostruário de tentações. Música, teatro, livros, comida, vida. Tudo, quero tudo. Mas ao mesmo tempo, a cidade é sufocante, e impõem barreiras caóticas para qualquer desejo que tenhamos. Horários, transito, pessoas atravessando as ruas. Violência e monstros saídos de filmes do Lynch a cada esquina. Por vez, domingo passado, um ser primal, saiu por detrás de uma lata de lixo. Enfiou as mãos no bolso, encarou minha namorada e depois me fitou dos pés a cabeça. O ser totalmente fora de uma racionalidade confiável, tropeçou o andar pela corda bamba da vida e começou a tossir e botar para fora todo o câncer da alma ferida de pobre brasileiro. Nós apertamos o passo pelas ruas do centro.

É sempre assim, o grotesco rabiscando o harmonioso. Não podemos ignorar um mundo todo que nós cerca. Chamarei minha pequena de raposa, é assim que gosto de chama-la e se por vezes deixar escapar esse apelido, já sabem de quem me refiro. Eu e ela estamos a alguns meses juntos. Pretendemos juntar os trapos, pular para um barraco nosso, montar nossa casa. A finada instituição do casamento. Mesmo que não por meios religiosos, que hoje andam com a dignidade pra lá de arranhada, temos o desejo de formar uma família. Eu mais ela. Ela e eu e o futuro que nos reserva.

Não é fácil dois jovens se apaixonarem e encararem esse mundão a fora. Alias pode ser até fácil pra quem não tem nada. Nada por nada, um nada ao lado de quem se ama não? Mas não é caso. Tenho certos mimos, como devo admitir, incuráveis. Meu utópico sonho pelo teatro, minha paixão pela música Pop e conseqüentemente a banda que tento empurrar desde pirralho, meu gosto pela cultura que por vezes não é tão barata como poderia ser, isso são fatores delimitadores de um mergulho a cegas nessa selva de concreto.

Devo fazer um parêntese aqui em relação a música Pop. Essa foi a música originada pelo quarteto de Liverpool, sim os Beatles. Esses criaram um universo aonde a música podia ter um imenso apelo popular sem deixar de buscar evolução melódica, técnica e contextual. Eles e mais um bando de jovens fizeram muita coisa boa. Não me refiro a essa música mastiga que teima em reinar nas Fms do país. Música boa é música boa, a música atual passa longe. Se quiser entender do que digo, procure ouvir Mutantes, Rolling Stones, Roberto Carlos, novamente uma intervenção, o Rei tem sua fase boa apenas até o começo dos anos setenta, Nirvana e Radiohead. Aí sim estamos falando de música de qualidade.

Por isso ainda não sai da casa de meus pais, um tanto quanto geração canguru mesmo. Apesar de conscientemente conhecer a triste situação dos jovens que se penduram em seus pais até os trinta, trinta e cinco anos, procuro usufruir dessa regalia por mais um tempo. Quem sabe até o fim do ano pelo menos. Até lá posso juntar uma grana, pesquisar um canto bom para morar, no centro mesmo. Nós dois ostentamos esse desejo de morar próximos ao centro. Me pergunto por vezes a melhor opção, parcelar algum cantinho, me meter no aluguel. Dúvidas, dúvidas e mais dúvidas de um jovem.

Nesse domingo que encontramos o famigerado monstro do Lynch, não confundir com o quão monstro Lynch consegue ser, me refiro ao ser que nós assustou no centro, pois nesse mesmo domingo, ainda tivemos um momento maravilho. Sentamos em uma cantina italiana que ainda preserva o aspecto mais antigo de servir a comida. Pedimos uma bela massa enquanto conversamos horas a respeito das jovialidades que fazem essa vida a dois tão maravilhosa.

JMadrid
Enviado por JMadrid em 11/06/2008
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