Pontuando o mundo*

No embrenhado do sertão da Paraíba, o cineasta Eduardo Coutinho bateu à porta da casa de seu Leocádio. “Hoje eu estou sem pontuação pra nada. Hoje eu estou sem pontuação pra nada”. Sem ânimo pra prosear: seu Leocádio estava sem saber como pontuar as coisas nas palavras, como botar ponto em coisas sem fim do mundo, mundo que pra ele – que vive numa localidade onde se conta o número de famílias: 86, de vasto nem deve ser tão, mas a alma é tamanha que ultrapassa as pontuações.

Queria Coutinho saber de seu Leocádio o que no mundo o faz ser gente. Desconfio, no entanto, que Coutinho queria mesmo era saber ele próprio ser gente, queria saber se sente o mesmo que as gentes do sertão: essas dores, esses quereres, os ânimos, os desânimos, uns sentires que dias existem impossíveis de se poder pontuar, de se poder colocar em palavras, em olhares, em toques, em qualquer coisa: ultrapassam os instrumentos corporais e expressivos. Não que isso tudo não possa ser ditos, mas é que é preciso de tempo pra saber pontuar o dizer.

E foi nesse primeiro contato que seu Leocádio mostrou para Coutinho o tamanho de sua humanidade, tamanha ao ponto de não ter pontuação toda hora. Humanidade esta que localidade com pra lá de 86 famílias termina por nos tirar, termina por não nos permitir nos faltar pontuação. Se faltar então, é qualquer coisa, menos qualquer coisa de admirável.

Digo isso porque outro dia me faltou pontuação pras coisas do mundo, pras coisas dos meus sentimentos. Do jeito que a seu Leocádio faltou ânimo pra prosear – coisa que todo sertanejo faz bem, me faltou pôr em palavras meus sentimentos – coisa que bem tenho aprendido. Era querer demais, sentir demais, não saber demais, saber demais, coisa que ultrapassava meus instrumentos, coisa que ultrapassava meus contornos.

Seu Leocádio terminou por entrar na prosa com Coutinho, meio amuado, meio manhoso, escorado na porta, tampando a luz do sol com a mão, se embrenhando entre os braços, mas foi se mostrando um homem tão cheio de certezas que, num reencontro, chegou inclusive a questionar a crença de Coutinho em Deus.

Foi assim que seu Leocádio apareceu no filme de Eduardo Coutinho, O Fim e o Princípio. Foi ele com quem eu mais me identifiquei. E é num reencontro que eu quero mostrar a pontuação porque, como ele, eu também sei fazer.

*crônica originalmente publicada no site Crônica do Dia - www.patio.com.br/cronica

Cristina Carneiro
Enviado por Cristina Carneiro em 23/01/2006
Código do texto: T102624