A IMPRE-VISÍVEL PERVERSÃO - Berenice Heringer

De repente as tragédias coletivas nos surpreendem no dolce far niente, na ilusão de que tudo está nos eixos, as roldanas sociais bem lubrificadas, sem atritos, o quadro nos conformes, "como deve ser". Aí um policial se mata e começa-se a desmontar o cenário da normalidade e não temos jeito de remendar os buracos, esconder os refugos, apagar as pegadas...E as vítimas vão-se amontoando como mercadorias descartadas.

Então vou à estante e pego o livro Perversão, de Flávio Carvalho Ferraz, enquanto o criminalista fala nas parafilias, um termo cunhado por Freud para nomear alguns comportamentos que exorbitam a esfera das neuroses. O advogado diz que pedofilia não é um crime tipificado no Código Penal, o nosso é de 1941. É um desvio de conduta que aparenta um quadro de "doença", passível de tratamento médico. Aí, eu dou um pulo na cadeira! A pedofilia é uma perversão de caráter, é uma sociopatia típica do psicopata, mas o termo é fichinha. É só recorrer à etimologia do vocábulo que não diz nada, absolutamente, da gravidade do comportamento e das conseqüências para as vítimas. Pedo é um prefixo latino que se refere a criança; filia é amizade, simpatia, o mesmo do prefixo em filosofia. Nós podemos agüentar esse soco no estômago? Como pode uma palavra inócua, até inocente, batizar uma conduta crudelíssima que nem a Psiquiatria chegou ainda a um consenso, uma definição? Vamos deixar de lado o palavreado e cair direto na perversão.

Como estudo bastante, participo de congressos e simpósios de Direito, Psiquiatria, Psicossomática e Psicanálise, o livro que cito acima está todo marcado. Chamou-me a atenção, na página de rosto, uma anotação a lápis As neo-necessidades.

O ego do perverso é escravizado pela compulsão à atuação de fantasias, a função sexual predomina sobre as funções somáticas vitais, tal como uma droga, o que seria um prazer vira uma necessidade. Mesmo o cara estando fraco, com febre ou doente ele é dominado pelo impulso da busca e da procura. Daí a compulsão, o objeto é anônimo, o ato é um ritual, uma montagem estereotipada. O sujeito usa o outro como se fora um anteparo à depressão e perda da própria identidade. Por isso ele tem sempre uma vida dupla, ninguém sabe dos desejos e atos secretos desse médico e monstro. Enquanto um medica e consola numa cena, o outro assume o comando, mutila e mata. A ilusão é a matéria que arma o cenário e ordena o ator a desempenhar o papel. Eles devem agora ser rebatizados de serial-sex.

Os compulsivos na busca e os obsessivos na atuação, sempre a repetição, o modelo estático e que denuncia uma estética paralisada, uma pobreza de fantasias. O objetivo é a liberação de uma angústia insuportável. O objeto queima-se como um palito de fósforos, desaparece indelevelmente da cena e da memória do perverso. É assim que des-funciona a mente do maníco do parque, um perfeito exemplar de serial-killer que, se não estivesse recluso, estaria atuando infindavelmente seguindo o mesmo modelito estático na prática sado-torturante.

A Dra. Joyce McDougall, neozelandesa formada na Inglaterra e que morou em Paris, sustenta que o perverso monta seu ritual para provar ad infinitum a inexistência da castração. A sua, claro. Ela se dedicou ao estudo de um grande número de casos clínicos de perversão, isto desde 1978. O perverso é sempre um exibicionista e tenta demonstrar, para si mesmo, mas precisa do concurso do objeto, à sua revelia, através da submissão pela sedução, depois pela violência, o seu triunfo contra a castração. Há uma mis-en-scène como num jogo lúdico (aqui existe um pleonasmo, já que jogo é ludem, mas há jogos perigosos como a roleta-russa). Ele prova a si mesmo, em cada ato, que a castração não é perigosa nem mutilante, pode até ser prazerosa, e mesmo possibilitar o gozo. A situação é irremediável pela irrecuperabilidade desses elementos com seus ferozes desvios de caráter. VV-02/06/08

Berenice Heringer
Enviado por Berenice Heringer em 09/06/2008
Código do texto: T1026032