Aulas de harmonia, Atílio e D. Canô

Eram as aulas de teoria, percepção, rítmica e harmonia às terças-feiras no Conservatório Musical. Os alunos iam mudando, entrando, saindo, ficando. Éramos cinco quando concluímos: o Atílio, o Alexandre, a Cibele, o Sílvio e eu.

Fizemos teoria I, II, III, IV, percepção, rítmica, harmonia I, II, III... O professor é que dizia quando começávamos novo bloco das matérias. Eu achava quase tudo muito difícil, mas não desistia. Cada um de nós ia melhor numa coisa ou noutra, de modo que parece que nos complementávamos.

O professor sabia que aquilo tudo era muito árido e fazia umas graças para deixar mais amenas as aulas. Ou então era o Sílvio que vinha com a sua presença de espírito acionada e suas piadinhas contadas baixinho, próprias para cada hora. Podia ainda ser o Atílio, com a aprovação do professor. Ao mestre bastavam vinte minutos na aula de harmonia para sairmos zonzos e sérios, sem força de expressão nas palavras.

O Atílio, por exemplo, vivia combinando com o professor uns churrascos, umas cervejas, e depois sabíamos que havia dado certo, porque ficavam contando dos encontros. Se o professor se demorava na secretaria, ele se punha à frente. Às vezes fazia o professor Emerson viajando nos campos harmônicos. Outra hora o Atílio entrava de Caetano Velloso e falava de Dona Canô como se fosse a sua própria mãe.

Atílio era magro, usava umas camisas curtas por fora das calças e contava piadas, casos, imitava o Caetano, cuja biografia ele mantinha atualizada, pois era seu fã e ninguém duvidava disso.

Um dia ele contou a história de um seu tio. Na hora parecia tudo muito verídico. Mas era história, como a dos comediantes que contam casos colocando os membros da família de personagens. O tio dele, dado aos saltos e pulinhos fora de casa, chegou, cansado e tarde da noite, da farra e entrou pé-ante-pé para não acordar a mulher. Sentou-se na cama e desabotoava a camisa quando a mulher acordou e perguntou:

_Ué, Maurício, por que é que você vai tão cedo hoje?

_Chegaram as peças na montadora, mulher; precisa estar tudo pronto pro fim da semana. Abotoou a camisa, calçou de novo os sapatos e teve que ir para a rua de madrugada e ficar perambulando para depois pegar às sete e meia no serviço.

Contou também, uma noite, a anedota do padre que botou para fora da igreja a mulher com um decote muito sem compostura e veio um fiel defender:

_Mas, ‘seu’ padre, ela tem o direito divino!

_E o outro fiel, igualmente muito pronto:

_ E o esquerdo também!

Eram assim as aulas. Eram assim os amigos, e era esse o jeito que sabiam fazer as coisas para aguentarmos assuntos complicados por tanto tempo.

A última que eu soube do Atílio é que ele apareceu na Escola Municipal de Música na aula do professor, para matar as saudades. Com o seu jeito galhofeiro bem conhecido do mestre foi logo fazendo uma pergunta bem enrolada para deixar os novatos de boca aberta: ”Oh! “ Nenhum mistério na pergunta disse o professor, mas ele deixou lá sua participação. Despediu-se logo e saiu.

Neusa Storti Guerra Jacintho
Enviado por Neusa Storti Guerra Jacintho em 09/06/2008
Reeditado em 04/04/2013
Código do texto: T1025773
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