Um invasor misterioso

De vez em quando a vizinhança se apavorava com boatos de que ratazanas estariam invadindo as residências, mas como diz o velho ditado que prevenir é melhor que remediar, eu não titubeei: adquiri um gato em quem depositei toda confiança e o batizei com o nome de Miau. Era ele o mais nobre dos gatos que já vi: robusto, esperto e ativo a qualquer movimento. Cabia-lhe a nobre missão de barrar a entrada de tais intrusos no regaço do meu lar.

Não tardou e alguns indícios foram encontrados em várias partes da casa, tal como roupas roídas, barulhos noturnos, odores e, por fim, um objeto de cor escura do tamanho de um grão de arroz deixado sob um móvel da sala de estar.

– Estão vendo? Na casa tem rato! – exclamou a patroa, irada, gritando bem alto no meu pé-de-ouvido – Pra que serve esse bendito gato? Eu tenho horror a ratos! Que tratem de extermina-lo!

Senti-me decepcionado com o Miau e pensei cá com meus-botões:

– Será que aquele objeto foi mesmo deixado por um rato? E se foi, por que Miau não deu cabo dele? – Fiquei atento, com todos os sentidos à flor-da-pele.

Alvoroçado comecei a remexer em tudo que havia na sala, e uma agitação apoderou-se de mim: me parecia que a qualquer momento eu estaria cara-a-cara com uma terrível criatura a quem eu tenho medo e extrema ojeriza e, enquanto eu vasculhava tudo fixava o pensamento naquele animal de anatomia pré-histórica e de aparências repugnável. Não teria nenhum prazer ter que enfrenta-lo, mas, cheio de desconfiança comecei a puxar sofás; amontoar cadeiras; amarrar cortinas ao meio; retirar sapatos, chinelos, brinquedos e alguns objetos ao chão, enfim, tudo preparado para a gloriosa captura do alarmado invasor.

Enquanto isto as crianças da casa corriam desesperadas se esbarrando na direção do dito objeto da aparição e lá se postaram em círculo com suas cabeças abaixadas na direção do mesmo, donde, entre elas, deu-se inicio a um acirrado debate que parecia ter a arqueologia presente em suas falas. Elas mexiam e remexiam o objeto com uma varinha e algumas juravam que o mesmo pertencera a uma barata, não! Um pássaro, não! Um besouro, não! Uma lagartixa, não! Elas discutiam com muita veemência, mas, enfim, deram um primoroso veredicto bradando quase que uníssonas:

– Vovô e vovó, isto é indiscutivelmente um cocô de rato.

Dito isto todas se voltaram espantadas e o silêncio se fez notório. Mas não tardou, e tal como um inventor que cheio de ufania majestosamente alarma o seu invento, assim, também, agiu uma das crianças ruidosamente gritando:

– Olha lá um rato! Vejam! Estou vendo um rato!

As outras se alertaram com a espantosa notícia e simultaneamente varreram tudo com olhares avidamente arregalados.

– Aonde?

– Cadê?

– Cadê?

– Acolá! Entrou correndo no porão! – Confirmou a primeira

Todas dispararam barulhosas na direção indicada. Elas verdadeiramente pareciam mais animadas e corajosas que os adultos da casa.

– Trás o Miau, rápido! Traz o Miau. – Disse a mais velha e mais decidida.

Uma delas agarrou-se ao bichano – ainda sonolento – e o jogou no meio do porão. Nesse ínterim a patroa sentenciava, claramente determinando.

– Fechem bem essa porta e não o deixem sair. O Miau matará o maldito!

Com uma vassoura na mão, e não disfarçando o meu medo, também adentrei no porão – que estava bem iluminado –, e lá todos os olhares se radiavam à procura do tal invasor que misteriosamente desapareceu entre as quatro paredes. Fiquei até duvidando se ele realmente fora avistado.

Tudo que havia no porão eram simplesmente um cesto com roupas sujas, uma mesa repleta de jornais velhos e de livros mofados; algumas ferramentas e nada mais, mas...cadê o rato? Onde ele se escafedeu? - Indagávamo-nos desconfiados.

Mexe aqui mexe acolá e, por fim, levantei a tampa do cesto que estava semi-aberto e lá estava ele com a cabeça enfiada entre os panos sujos e o resto do corpo exposto. Ele imaginava estar seguramente camuflado e imperceptível. Tive pena: era apenas um minúsculo e indefeso bebê camundongo que tentava esconder sua própria vida. Cauteloso, cutuquei-o com o cabo da vassoura e a criatura me encarou dentuda; emitindo um silvo agudo e amedrontador. Certamente aquele som era uma imploração por um socorro. Novamente tive pena. Desesperado ele rodopiou no cesto e pulou para fora ficando cara-à-cara com o terrível Miau. Mas este parecia desolado e o ignorava, simplesmente virava a cabeça para acompanhar os agitados movimentos no ambiente e aparentava ter um ar de desprezo a tudo e a todos em seu redor, principalmente ao minúsculo camundongo que corria atordoado.

O ratinho mal sabia que aquele seu algoz – por natureza seu predador indefensável –, demonstrava-lhe extrema contemplância, pois, pacientemente, se limitava a acompanha-lo com olhares piscos e piedosos.

O misterioso invasor corria aturdido sob os ataques dos humanos e por fim se ateve sobre o lombo do bichano onde calmamente se acomodou. Parecia ser ali o seu porto seguro e talvez ele tivesse entendido que o seu grande rival agora se tornara seu maior aliado e protetor. De repente o silencio quebrou todo alarido que há pouco eclodiu no porão e admirada com a cena que via entre os dois animais, uma das crianças, muito comovida, desabafou dizendo:

– Olha só, gente! Ninguém nunca viu uma imagem igual a essa. O ratinho está deitado na costa do gato e ambos se parecem amigos! Até se lambem!

O Miau parecia hipnotizado. Nada o incomodava. Para ele o mundo estava paralisado.

Olhei fixamente para ambos, e com certa melancolia exclamei:

– O quê é a natureza!

Tive a nítida impressão de ouvir o Miau dizer ao ratinho:

“– calma meu amigo! Não te matarei. Que me venham as ratazanas”.

Creia, fiquei extasiado. Jamais vi coisa semelhante.

Mas mesmo assim o camundongo foi novamente insultado e o pega-pega reiniciado. Ele escalava as paredes num alpinismo incomum, e deslizando caía; subia na mesa e pulava no maior dos terrores, e, no ápice de seu desespero, se arremeteu por sobre uma das crianças e misteriosamente desapareceu frente à varredura ocular dos humanos ali presentes.

Estávamos quedos e incrédulos.

Não ficou centímetro sem vistoria, mas... cadê o camundongo?

Pela segunda vez um mistério ficou no ar. Cheguei a pensar que o gato o engolira ou que algum espírito das florestas o abduzira.

Com intensa decepção desistimos da busca e consolávamo-nos afirmando que a qualquer momento, ele, ou morreria de fome, ou seria devorado pelas garras do bichano.

Fechamos a porta e nos retiramos envergonhados por não o termos matado.

Passados alguns dias a pequena criatura foi vista saindo sorrateiramente porta afora em desafio à inteligência humana. Desta vez correu para o matagal. Foi à procura da liberdade e do direito que tinha pela própria vida. Foi gozar suas delícias nos esgotos da vida, mas deixando-nos com a grande lição de que os animais também se amam, se respeitam e se compadecem.

Esfriados os ânimos concluímos que o Miau foi o grande herói daquela labuta, e como recompensa ele foi laureado com uma gloriosa castração.

São Paulo-BR - Junho de 2008

José Pedreira da Cruz
Enviado por José Pedreira da Cruz em 08/06/2008
Reeditado em 07/11/2009
Código do texto: T1025307
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