Ao pé da fogueira

                  Meu querido e nobre santo,
                      Que a gente qué e ama tanto,
                      Sua foguêra é o encanto
                      Da gente do meu sertão.
                                          Patativa do Assaré


        Guardo ótimas recordações das fogueiras de São João. Na minha cidade, no alto sertão cearense, em cada esquina - década de 1940 - acendia-se uma. Em torno delas, celebravam-se casamentos; fazia-se de um amigo um compadre; e se assava o milho que fora plantado entre janeiro e o dia 19 de março, dia de São José, padroeiro do Ceará.

          Segundo uma lenda cristã, muito conhecida, a fogueira de São João teve origem numa promessaque fora feita por Santa Isabel à sua prima Maria Santíssima: uma fogueirinha seria acesa, assim que João Batista, seu filho, nascesse.
         No Nordeste, entretanto, dá-se ao aparecimento dessas fogueiras uma versão diferente. Diz-se, que os sertanejos as queimam na noite de 24 de junho, para agradecer ao santo Batista, assim o chama Rachel de Queiroz, o bom inverno.
     É uma versão que não bate com a realidade.
Com inverno ou sem inverno, o nordestino festeja o são-joão com fogueiras, fogos-de-vista, e muito arrasta-pé. Contudo, não se pode negar, que quando o inverno é bom, a festa do Precursor é mais animada e também mais rentável.

          E quando se diz por lá que o inverno é bom? 
      No Ceará, Alagoas, Piauí, Paraíba, Rio Grande do Norte, Sergipe e no Maranhão, estados pertencentes a uma região  de incontrolável aridez, o inverno é bom quando chove pra valer, sem interrupção, nos primeiros meses do ano.
      É mais ou menos o que, no momento, está acontecendo: no início de 2008 choveu tanto que a maioria dos açudes nordestinos está sangrando. Com tanta chuva, tragédias podem ocorrer provocadas pela ferocidade das águas.       
      Mas, no sertão do Nordeste,  a chuva torrencial é chuva abençoada. Traz fartura; traz felicidade. Ruim é a seca. Morrer de fome "dói mais, muito mais, do que morrer afogado", me garante meu amigo Arimatéia, caboclo honrado, pai de dez filhos, residente nos cafundós do Ceará. 

        Deixei no sertão muitos afilhados de fogueira. Quando o são-joão se aproxima, recebo cartas de muitos deles. Pedem-me a bênção.
     Este ano, porém, deu-se uma coisa inusitada. De uma cidade do Nordeste, acabo de receber uma carta (à mão) longa, apaixonada e lamuriosa.  Não direi nem o nome da cidade nem o nome da chorosa missivista. 
       Depois de recordar o são-joão de 1948, ela, muito queixosa, acusou-me de tê-la abandonado!
No primeiro instante, não entendi o porquê dos seus queixumes.  Até que ela mesma  encarregou-se de esclarecer:
       "Casamos sob o calor intenso daquela fogueira. Tá lembrado? Você me prometeu mundos e fundos, e ainda jurou amor eterno... Um dia você partiu, e nunca mais deu notícias. Te espero há mais de 50 anos..."

        Em 1948?  Sessenta anos já se passaram. 
     Depois de tanto tempo, como teria ela me localizado?  Na carta, ela diz que me descobriu no tal do Orkut.  Essa internet!...

          Nunca podia imaginar que um "casamento joanino" mexesse com alguém. Muito menos com a sertaneja que me escreveu, cobrando-me o cumprimento de um compromisso conubial que eu houvera assumido, disse ela, há meio-século...
          Em junho de 1948, com 14 anos de idade, ela era encantadora...  divina... E agora?
      Naquela noite, não tive outra maneira de me beneficiar da sua beleza ingênua senão "casando" com ela ao pé da fogueira e com as bênçãos de São João. O destino - ingrato? - me fez perdê-la de vista...  

 
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 08/06/2008
Reeditado em 18/04/2014
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