foto -  Angra

 

O olho azul da propaganda



Não agüento mais ver o olho azul da propaganda. Pois é, era isso que eu pensava. Antes, havia no site um olho assim. Toda vez que entrava, lá estava ele - preto e branco, bonito que só, apenas a íris azul com uma lágrima se esboçando, pronta para cair. Bela propaganda. O olho não me encarava, mas se perdia num vazio longe, fitando, à direita da tela. Caramba ! Eu queria chorar assim, azulzona e bonitona, e com efeito de branco e preto. O olho sumiu e outras propagandas vieram. Cheguei a me perguntar porque escolhi publicar meus textos via Internet e pensei na observação do José Antonio Callegari : "A internet surge como a nova prensa de Gutemberg, quebrando o monopólio da comunicação, do saber. Hoje podemos apresentar trabalhos sem o crivo da seleção meramente comercial de "editores". Pronto, eu tinha uma boa resposta, e por aqui fiquei. Meus textos, que se esmeram em traduzir-me na mais pura nudez, ficam as vezes ali, espremidinhos, entre propaganda de livros, pousadas, sites, curso de Auto Ajuda: "God loves you" e eu me pergunto : What a fuck is that? "Curso de formação para pastor"...de ovelhas ? Outro dia, perdi um verso distraindo-me com uma propaganda de Tai Chi Chuan, taí um negócio que nunca fiz, pensei, e pronto, o verso sumiu ! e é claro, nunca vou fazer Tai Chi Chuan. Tenho prazer na literatura como tenho em nadar. Faço ela de forma sensorial, mais do que intelectual...gosto de ser meio stripper das minhas letras. Como num haikai, se eu conseguir acordar uma sensação muito boa, que possa fazer emergir no leitor, apenas um dos nossos sentidos duplicados, ainda que por alguns segundos, pra mim, já é bom ! A minha poesia não tem planos, apenas propõe uma certa nudez, o que já é muito - o desnudar-se não é assim tão simples. Exige coragem, trabalho duro com as palavras, um zelo enorme com a minha essência, para que ela não se macule nas contusões e ferimentos dessa breve existência.
Fico imaginando Rimbaud e sua poética teoria sobre o processo criativo, publicando na Internet: "...o poeta se faz vidente por um longo, imenso e racional desregramento de todos os sentidos...busca a si, esgota em si mesmo todos os venenos, a fim de só reter a quintessência". Seria engraçado ver esses poetas pulando no tempo, da torre de marfim para esse caldeirão virtual em que ainda não sabemos direito, qual o ponto certo do cozimento, que temperos exatamente usar, se o sabor no final será, de fato, bom.
... mas, e o olho azul da propaganda ? Ele flertava com a beleza que adoro namorar, convidativo. As vezes me perdia nele, como num devaneio e apesar da setinha : entre, entre, entre...nunca entrei. Sempre fui assim: "Não me pressione que é pior, aí é que eu não vou "... mas sempre quis mergulhar naquele olho, roubar aquele azul, nadar naquela lágrima nuazinha, como se estivesse numa Ilha de Angra, só "O sol por testemunha" como num filme noir, e esquecer as propagandas, que por vezes embotam meus olhos, tão somente castanhos de ressaca, como uma Capitu virtual.





Ana Valéria Sessa
Enviado por Ana Valéria Sessa em 22/01/2006
Reeditado em 02/07/2009
Código do texto: T102285
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