Esse povo de um "jeito meio assim" eu evito.
O T-REX dorme agora, ressonando altíssimo por sinal. (Eles roncam!) e eu aproveito a pausa para lembrar das coisas da minha avó, Laura Miranda, mulher nascida em 1905, mãe de seis filhos, pobre de Jó, que perdeu todos os dentes antes dos 25 anos e trabalhou, mesmo quando não havia necessidade, mesmo em sua senilidade enquanto cochilava. Dormindo ela reproduzia os movimentos de lavar, passar roupas, mexer panelas, costurar sapatos - meu avó era mestre de óficio em sapataria, fazia sapatos ortopédicos e era também sapateiro, remendava sapatos, para aumentar a renda, haja visto ter perdido tudo sustentando irmãos preguiçosos, mas isso é outra conversa - e varrer a casa.
Fugiu pra casar por que não queria viver em "casa de cunhada, servindo de escrava", melhor era ser escrava do marido, por que essa escravidão traria algum benefício.
Recusou um pretendente paupérrimo, sem ofício, órfão. Diz que ele deixou de comer, pegou tuberculose e morreu. Minha avó sempre disse que nunca mandou ele deixar de comer. "Morreu de besta", sentenciava, tranquila.
Achou meu avô no cemitério, dia de finados - era um passeio chic da época - e agradou-se do tipo alto, moreno escuro, cabelo de índio, seu oposto total (baixinha, lourinha), informou-se como pôde: o sujeito bonitão tinha ofício e vivia direito. Podia ser. Primeira tentativa de fuga mal sucedida.
Meu bisavô ficou fulo. Sua filha era loura e ia se arrumar logo com aquele pedaço de tição? Desguiou a coitada para o sertão onde lhe deu a desdita de comer carne de bode e tomar leite de cabra os sete dias da semana. E ela como eu jamais suportou sequer o fedor de carne caprina.
Em tempo de morrer de fome foi reconduzida a casa paterna com a promessa diante da virgem Maria de não tentar mais fugir. Um dia foi ao dentista com a velha tia. Fugiu. Foi ao cartório, casou, pronto acabou-se. O meu bisavô acabou aceitando, afinal o pedaço de tição visto à luz do dia nem era tão preto assim. Era mais da cor de mel de engenho. Filho de índia pegada a dente de cachorro. Passava.
Pariu e viu morrer dois dos seus filhos, das doenças mais bestas que na época não tinham cura. Deu chá de barata nova para as filhas na coqueluche e de cocô de cachorro no sarampo( ela dizia que era Deus que sabia que não existia remédio e curava com essas coisas; sempre achei que ela estava com a razão) e tinha lá seus preconceitos: gente com um "jeito meio assim" era esquisito - nem me perguntem o que é um "jeito meio assim" eu nunca consegui saber o que era isso, mas também sou cismada com gente que tem um "jeito meio assim" - mas, jamais a vi recusar o abraço de um preto, nem reduzir quem quer que seja a menos que gente, jamais a ouvi falando mal de quem quer que fosse ou fizesse, nunca na vida ela recusou um abraço, um beijo ou um prato de comida, nem um só remédio. Para ela todo mundo era "gente", e, como para mim, gente é assim mesmo; exceto as que tem "um jeito meio assim", e nessas não importava cor, religião, profissão nem simpatia. Tinha um "jeito meio assim" ela evitava.
Ouço a voz da minha avó falando do que "presta e do que não presta". Não presta matar aranha, não presta mulher grávida matar galinha, não presta varrer casa de noite, não presta jogar fora umbigo de recém nascido, não presta cortar unha na cama (dá briga), não presta comer carne de bode (eca!), não presta mulher direita vestir roupa de bola, não presta mostrar espelho pra menino que ainda não fala, não rpesta ser ruim, não presta não dar uma surra em menino reinador (cresce safado) - mas só uma, pra meter medo, menino que apanha todo dia também fica safado -, não presta passar as costas da camisa do marido, não presta dar presente de pente e de lenço, não presta varrer casa nova com vassoura velha, não presta usar panela onde se queimou tres vezes a comida, não presta falar mal dos outros (quem fala da mãe dos outros não tem dó da sua).
Hoje amanheci com uma presença de Lalu à minha volta, talvez me consolando, como fazia tão bem, a mim que sou uma pessoa um pouco triste por natureza. Talvez, talvez.
O T-REX acordou, quer saber as novidades. Bem...a novidade é que vou me levantar daqui, haorita, e lavar o banheiro.
o T-REX voltou a dormir. o Traidor.