A Coruja no telhado
Deus – eis a natureza diante de meus olhos, dentre a imundície visual dos casebres da periferia. Em meio às pregas baças da noite fria, onde o sereno abriga gotículas de uma solidão cheia de azia.
Eu estava sentado divagando sobre sei lá o que, não sei se divagava, ou se envolvido pelo torpor do momento, mirei entre o arfar das cortinas grossas da sala de estar, à silhueta imponente daquela que tiraria meu sono, e se dormisse, com fé – imperaria meus sonhos, uma enorme coruja dilacerando um rato, desses que invadem nossos lares, alto da noite para roer as migalhas de esquecimentos soltas pelos assoalhos surrados de nossa vida.
O fato é que lá estava ela, linda – ah... como era linda, fiquei observando... o quê? Uns trinta minutos, mais? Não sei! O suficiente para sua presença encher-me de um sentimento divino, de gratidão, gratidão para com o grande arquiteto, pois apenas ele poderia naquele momento (por que naquele exato momento), entregar-me a figura daquele animal tão lindo, tão cruel. Lá estava ele.
O belo animal devorava sua presa, que com certeza fora apanhada com um gesto soberbo de um predador tão ardiloso e austero –, por que será que sempre colocam as corujas sobre livros, essa pequenas estatuetas de gesso que vendem ambulantes e lojas de marcas? Por que será que um animal como esse pode ser vendido como souvenir?
Sabemos que não são vendidos apenas os feitos de gesso!
De repente, eis que alça vôo... arma as gigantescas asas e num bater forte e presunçoso ergue o corpo denso (cor madeira) e a carcaça do roedor preso as garras letais e perfurantes, passou sobre minha cabeça erguendo com isso, dilatando com isso, a sombra enigmática de sua beleza. Percebi quando pousou na antena de meu telhado...
Subi na mureta contígua a de meu vizinho, fiquei a dois metros do animal... dois metros que me encheram de nervosismo, medo e esperança. Uma esperança seguida de encantamento, era eu um menino diante da nudez de uma mulher, era eu um homem diante o parto de sua filha, era eu um homem outonal diante o enterro de sua esposa.
Assustada alça novamente vôo deixando-me no solo perdido, sofrendo com o distanciamento, de um momento que marcará o resto de meus dias.
Flávio Mello
03/04/2007
23h 52min
Obs.: avistei a coruja por volta das 22h