O GUARDADOR DE REBANHOS
Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar. (Alberto Caieiro)
Raimundo Pereira dos Santos, também, nunca guardou rebanhos, mas é como se os guardasse, pois as sextas e aos sábados no descampado do loteamento José Augusto Sampaio, que ainda vai virar uma praça, no fundo da Academia Fitness de Washington Sá é fácil você apreciar cenas bizarras e emocionais protagonizadas pelo senhor Raimundo, o conhecido “Borracha” que a partir das quatro horas da manhã, lida com os animais que trazem os produtos para a feira livre, cujos donos entregam para ele guardar. Com mais carinho do que um manobrista de hotel cinco estrelas conduzindo uma Ferrari, “Borracha” conduz os animais que lhes são entregues ainda na feira, para o estacionamento que ele ainda chama “Curral de Conselho”. Curral de Conselho?!! Algumas pessoas nem sabem o que significa. O que é Curral de Conselho?! Esta denominação significava no século IX e até meados do século XX o local, criado pelo Conselho Municipal, onde a prefeitura de certos municípios guardava os animais soltos nas ruas, como num curral, até que os donos viessem buscá-los. Geralmente era localizado nas frentes dos matadouros onde as reses esperavam o abate. Mais tarde, com a inexistência de animais nas ruas – coisa que ainda acontece por aqui, apesar dos esforços do governo - o Curral do Conselho passou a ser chamado Curral de Conselho e servir como um abrigo para animais que passavam o dia na cidade enquanto os seus donos comercializavam nas feiras livres os seus produtos plantados e colhidos nas suas roças.
Ainda lembro-me do antigo curral de conselho localizado no descampado onde hoje está a casa de D. Mundinha Gomes, do curral da antiga Caixa d’água, onde hoje é o fórum, depois transferido para o descampado ao lado do armazém de secos e molhados de Rubinho, ali onde é hoje o mercado criado para ser espaço de lazer dos feirantes e, hoje, motivo das mais ferrenhas discussões na Câmara Municipal e nas conversas pré-eleitorais de bares e esquinas. Os Currais de Conselho mais antigos misturam nas minhas lembranças o cheiro da urina dos animais com o meu desejo, e dos meninos da época, em roubar por uns momentos um daqueles animais para dar um passeio pelas cercanias. Quantos de nós levamos surras homéricas pela aventura, politicamente incorreta como se diz hoje, mas altamente compensadas pelo prazer do inédito e da adrenalina, que nós nem sabíamos o que era. Sabíamos somente que era uma aventura maravilhosa. Hoje lembrando Caieiro, vejo-me depois da cavalgada, jumentada ou mulada, saltando do animal, da mesma forma que ele descreve no seu poema: - “deixavam-se cair sob a árvore antiga, se sentavam com um baque, cansados de brincar, e limpavam o suor da testa quente com a manga do bibe riscado...” Não lembro o nome do guardador de rebanhos dessas épocas, mas lembro da sua dedicação para com os animais que guardava, dedicação igualzinha a do “Borracha” o atual manobrista e guardador de animais. O Curral de Conselho do “Borracha” não pertence à Prefeitura, é uma criação sua, seguindo a tradição dos antigos currais oficiais. Ali naquele espaço não existem ovelhas, “Borracha” não é pastor, não tem o tradicional cajado, mas protege o rebanho dos “lobos” e se alegra com o relinchar do cavalo, o tropel do jumento, o zurrar do burro que já o conhece e docilmente lhe segue até o estacionamento de animais e de volta, no final do dia, ao seu dono, sem cordas ou amarras, apenas seguindo a sua bicicleta. Os passos dos animais chocalham em seus ouvidos como um tinir de delicados sinos para além da curva da estrada. Ai o seu pensamento fica contente e ele só se importa se eles estão contentes. Ele mostrou-me os olhos de um animal feliz, o olhar de um animal cansado e o de um animal triste. Ele sabe quantos e quais os animais que podem ser amarrados em cada mourão; da fêmea que está no cio, do garanhão inteiro, que não pode ficar perto dela, da jumentinha que está amamentando, do animal que passa o dia com a cangalha e, que se estiver prenhe, ele tira e guarda. Para o guardador de rebanhos o que importa é que eles sejam felizes e protegidos.
Num sábado qualquer, desses que virão por ai, vá visitar o Curral de Conselho do Borracha. Ele tem sempre uma boa historia para contar. Invocando Caieiro e do alto da sua genialidade poética, saúdo “Borracha” e todos os guardadores de rebanhos deste século, até mesmo os de almas...
"Olá, guardador de rebanhos,
Aí à beira da estrada,
Que te diz o vento que passa?"
"Que é vento, e que passa,
E que já passou antes,
E que passará depois.
E a ti o que te diz?"