OS UTEROMÓVEIS - Berenice Heringer

Os peritos em tráfego e trânsito nada sabem das compulsões dos desenfreados nas avenidas, autoestradas, becos e vielas. Os especialistas têm de se reciclar, sair da mesmice das falamansas dos grupos de padodeiros. É preciso perder o senso-comum, esquecer das balelas e mergulhar fundo nas motivações e "causa sui", a causa em si mesma, se já está em si é incausada, um conceito teológico de Santo Agostinho.

Mas vamos ver o que diz Freud, nosso inigualável perscrutador das causas desencadeantes. As que se des-enrolam como cascatas, mas não desencanam o indivíduo. Os sintomas são as camuflagens. A neurose é o que vem na frente para escamotear o que fica atrás, ou no fundo, quando o líquido é decantado. Decantar é também desencantar. O maior engano é o desengano. O médico desengana o doente incurável, terminal. Antes havia o engano do remédio. O médico remedia, porque o medicamento não existe. Há o Elixir e o Bálsamo, mas só para os deuses.

Voltando à causa sui, lembrando que sui é em si mesmo, por si só, que também os físicos quânticos, como Fritjo Capra, chamam de boot-strap (não sei se está correto; os inglesistas que me corrijam), que significa dar pulos com os próprios pés, ou botas, o auto-impulso ou engendramento. Por que será que os motoristas se acham em moto continuum, se não são os motores dos veículos? Como têm a ilusão de que são bólidos auto-propulsores intergaláticos, ininperceptáveis nos corredores-da-morte das autoestradas?

O carro, para o homem, é a representação simbólica do útero materno, que a modernidade fabricou, o maior objeto de desejo de todos eles, eternos buscadores do bem-bom, dessa terra prometida, a Terra do Sempre de Peter Pan. The Never Land de Michael Jakson. O paraíso perdido no momento da saída, o parto, a partida, o aparthaid. O carro é o sucedâneo, o arremedo, a cópia que a tecnologia avançada sofistica e incrementa mais a cada dia.

O Modelo T , primeiro protótipo de Henry Ford foi a Cruz de Cristo com seu topo cortado, a nova idolatria do autômato que queria ser autônomo, automotriz, automatriz. Matrix, cervix, placenta planetária vencendo a força da gravidade, sem anóxia, sem anorexia, clima tépido, úmido, maleável, fluidos intercambiáveis, fluxos intemitentes, flutuação, inércia, silencios-idade. Plenilúnio de licenciosidade, pois não há veto nem sanção.

Agora, também, as mulheres estão ficando fanáticas por carros. Nessa era em que as deusas Têmis e Àrtemis perderam a sabedoria e o poderio. Parece que houve um fluxo-refluxo hormonal, estrogênios aditivados com testosteronas, um hermafroditismo emocional.

Estão enredadas nas tramas de Hera nos muros sem arrimo dos homens. Sem grana para o pedágio, latas de cerveja no banco de trás, contra-mão, marcha-a-ré, num O Grito de Evald Münch na ponte JK. Algumas estão perdidas nessas autovias, esqueceram dos seus úteros e levam as suas bolsonas, cada vez maiores. Armazenam drogas, anabolizantes, algemas, cassetetes, refridiet, montoeira de bugigangas e badulaques e são presas nos occipícios...

A mulher que se preza basta-se a si mesma. Não precisa de vencer corridas de obstáculos e pular os muros da insensatez dos machos. Mulheres resolvidas mandam ver, fazem o que deve ser feito, não precisam de bolsas, pois já trazem as suas bolsetas portáteis, móveis, nem precisam de pernas-de-pau nos saltos altíssimos dos bonecos gigantes de Olinda.

Os volantes mutantes e desgovernados vão se espatifar no primeiro poste ou transpor o concreto da ponte Rio-Niterói. Os pés-de-chinelo pensam que carro é útero. Nós sabemos que não é. De posse da certeza, podemos guiar algum crédulo-desavisado...VV. 29/maio/08.

Berenice Heringer
Enviado por Berenice Heringer em 03/06/2008
Código do texto: T1017338