AO COMPRIDO DO CORPO

AO COMPRIDO DO CORPO

DONATO RAMOS

do livro FOLHAS SOLTAS

Veio-nos à mente um trecho de “A DERRADEIRA INJÚRIA”, de Machado de Assis:

“Era uma voz sem rosto,

um eco sem rumor,

uma nota sem lira,

como a que suspirar

do cadáver disposto

a rejeitar o leito

em que dormira...”.

A cena que ontem vi foi mais ou menos assim. A mesa... a toalha branca... ela ao centro, ao comprido do corpo. Os olhos saltados, como a perguntar:

- Por quê...?

Lá estavam eles apagados. Em volta da mesa, como sói acontecer em ocasiões como essa, os homens e mulheres, olhando incrédulos para a sua direção, conversavam sobre vários assuntos. É a melhor ocasião para falar desde política até a mãe e a morte de alguém.

E a situação era propícia. Ela, imóvel, no centro da mesa.À sua volta, olhos os mais abertos, não acreditavam no que viam.

Sim. Ali estava ela.

Alguém teve a lembrança:

- Alguém deve falar sobre as suas qualidades e a vida que levou...

A idéia morreu ao nascer. Ninguém se aventurava a falar dela, agora tão quieta sobre a mesa de toalha branca.

- Por quê...? continuavam a perguntar os olhos fixos num ponto distante, onde outrora deveria ter sido o seu mundo de sonhos... o seu imenso mundo!

Passados alguns momentos, alguém veio para perto dela. Olhou-a de maneira esquisita. Outros, se afastaram. A tensão aumentou. A oração de costume em muitas famílias que o Tenente Milton Fonseca do destacamento de Itajaí quis fazer - e cito-o para dar autenticidade ao fato! - não foi feita. A hora era adiantada. Não daria mais tempo para nada. Nem o Padre esperaria tanto!

Pairava naquele ambiente, apenas um pensamento. Foi dado o sinal de ataque e nós nos lançamos sobre o seu corpo amarelado. Arrebentamos as suas pernas, o seu corpo, o seu íntimo todo.

Sabe? Foi a melhor lagosta que já comi em toda a minha vida!

Aquele jantar na Praia da Armação, oferecido à turma da Rádio Difusora de Itajaí, foi um sucesso!

E a lagosta que se encontrava no centro da mesa, dentro de poucos minutos não era mais lagosta.

Ninguém mais quis saber da expressão do seu olhar. O que interessava naquele momento era comê-la e nós, claro, assim o fizemos, antes que algum outro aventureiro o fizesse.

E era uma vez uma lagosta de olhar mortiço deitada ao comprido do corpo...

DONATO RAMOS
Enviado por DONATO RAMOS em 03/06/2008
Código do texto: T1017094