Borracharia Oásis
O topo da montanha é o tamanho desse desafio. Já não se faz necessário acudir o iluminismo da regressão. Viva a felicidade! Apertou a mão do borracheiro, pagou e desapareceu estrada afora. O resultado persistente da razão tornou-se a melhor trilha. Bom sujeito esse que lhe depositou dois trocados a mais de gorjeta dizendo: em cada rosto de trabalhador brasileiro há um homem de negócio. Que frase humana! Você só precisa acreditar na capacidade e prosseguir a escalada, repetiu. Era um homem de frases. Somos uma nação de empreendedores! Bebeu o gole de água mineral com vontade. O dia estava quente. O homem preencheu com seu discurso todo o espaço vazio enquanto ele trocava o pneu. Estava satisfeito com a caixa de sugestões cheia de elogios. Estava feliz por sortear um prêmio caso o pneu furasse logo adiante. Claro, somos um país de empreendedores, voltou a dizer, suando em bicas.
Tarde da noite diante da televisão assistiu a queda dos juros pelo noticiário. Talvez agora pudesse transformar a nova idéia em negócio como uma história pacífica do livro de receita para um bom almoço. No pneu havia um pedaço de ferro. Ferro plantado no meio da estrada. Mantinha o negócio a mais de três anos. Bem orientado não se podia dizer que estava. Precisava melhorar. Melhorar significava o almoço. Com o passar do tempo permaneceu ligado na educação à distância. Admirava muito o processo, mas não achava graça nenhuma no aprendizado. Era como ler o livro sozinho na borracharia obtendo por fim o seco diploma por correspondência.
Começou sentindo falta dos carros malucos na estrada tocando Hendrix de modo ensurdecedor. Eles surgiam de longe trazendo cigarros, flores e garotas naquele tempo das vacas gordas. Alimentavam o seu ofício porque a estrada era o paraíso das flutuações. Cada furo representava a instintiva ira dos ritmos em quilômetros rodados. Perguntava aos hippies em que ponto havia furado o pneu? Sobrevinham respostas colecionáveis feitas da mais perfeita ampliação de quilometragem. Decerto o estouro ocorrera no instante exato em que Jimmy riscava o acorde. Uma variedade incrível de respostas sensacionais. Um deles havia lhe dito que desejava ser indenizado, pela fábrica das indenizações, por ter gostado de rock parte da sua vida. Olhava o rock de agora com certa melancolia de estação passageira, épica época imorredoura; porém morta.
No caderninho anotava as melhores tiradas ao pé da estrada. Um hippie de nome Marte lhe fez dar sacudidas risadas em casa. No trabalho consentia em tudo como convém a relação entre clientes. Digeria a tentativa de diálogo enquanto martelava a calota traseira do carro.
- Hippie: Não admito! Não admito isso!
- Outro hippie: A vizinha deu a luz ao seu primeiro filho.
- Hippie: e daí se ele não é seu? É seu por acaso?
- Novo hippie: Muito pior. Ela deu o nome de Beatles ao garoto...
Ficaram horrorizados ao mesmo tempo. Por Deus! Será um bebê Beatles! Beatles Junior. E ela nem era um deles. Como um menino desses irá para a escola sem guitarra? Será plural. Sem individualidade. Protestaram com paz e amor sobre o ocorrido na condição de inacreditável.
Após alguns pneus todos se acostumam com situações inusitadas. Durante o assalto o homenzinho desceu do carro e ao contrário de falar em rodas e rodagens apresentou-lhe o revólver. Tomou o dinheiro do dia desaparecendo a mil por hora. Sempre ouvindo rock pesadão no volume máximo. Quando escutou com o ouvido duro a sirene da polícia já era tarde demais. Espatifou-se contra a pedra pontuda, cravada na curva sinuosa; engavetando-se numa mistura de alucinógeno com roubo.
Musicalmente havia piorado, mas em termos de rock parecia certo. Preferia ver o demônio a ter de ouvir outra vez rock and roll. O tempo haveria de criar novas definições aos rumos da adrenalina. Depois do expediente desejava escutar mambo. Decerto haveria sempre um hippie em cada carro, mas não foram eles que pioraram o mundo. Deu uma pancada certeira no rádio quando apareceu um homem já de idade com a bicicleta quebrada. Faltavam poucos minutos para o meio-dia e o sol ardia. Entregaria a bicicleta somente pelo turno da tarde. Era necessário emprestar a sobressalente para que o velho alcançasse a tempo o horário do médico. Por sorte Marô havia trazido lanche da cidade. Agora era o momento de esperar e sentir o pneu chegando totalmente furado pela estrada abandonada. Ele era o único oásis por ali. Era o único oásis. Pioneiro. Trocava roda de trator, de avião, de patins.