Se Pode Complicar...

Era o ano de 1976. Na estrada, voltando do Rio para Brasília, uma Variant branca, 74. Na direção, meu pai, carteira de motorista novinha, conquistada após três tentativas, aos 47 anos de idade. Ou seja, um barbeiro. Ei, não me condenem! Era meu pai e eu o amava demais. Ele tinha muitas e muitas qualidades. Dirigir bem nunca foi uma delas.

Minha mãe, seguia ao seu lado com o Guto, meu irmão caçula, no colo, meus outros quatro irmãos no banco traseiro e, na boléia, encaixada entre as malas e alguns travesseiros, eu.

Antes do meio dia, passamos por Paraobeba e ninguém quis almoçar na cidadezinha sem graça, preferindo rodar mais cento e cinqüenta quilômetros até Três Marias. Sábia decisão, exceto pelo fato de que, sob o sol daquele horário, as estradas em Minas Gerais têm um inacreditável efeito hipnótico e o velhinho, já cansado, acabou cochilando ao volante. O carro capotou, lançando quase todos para fora, menos eu e o Tonho que estava sentado no meio do banco traseiro. Fomos os únicos que nada sofreram. Isto é... Ele ainda levou um chute na cara. O Nando também teve apenas escoriações na perna.

Para tranqüilizar o caro leitor, dentre mortos e feridos, salvaram-se todos. Sem seqüelas, graças a Deus. Guto, com apenas dois aninhos, teve fratura exposta na bacia. Para ele, foi até bom: bem mais tarde, sendo o único dentre os irmãos a não ter um pistolão que o livrasse do serviço militar e já se vendo obrigado a compor as linhas de defesa do país, foi dispensado no exame médico por causa da cicatriz feiosa. Felizmente, a opinião do exército não condizia com a da mulherada e o danado só arruma namoradas lindas. Minha mãe quebrou algumas costelas, clavícula, omoplata e rótula. Estava desacordada quando a encontrei e, na ânsia de despertá-la, debrucei-me sobre ela. João, meu irmão mais velho, postou-se atrás de mim, em pé. Um grande corte em seu braço sangrava sobre a minha cabeça.

Fomos levados até o hospital em Paraopeba, onde, ao chegar, com a cabeça coberta de sangue, fui cercada por enfermeiras que achavam que eu era a mais ferida. Expliquei que não, mas não escapei da antitetânica, para não poder me dizer ilesa, afinal. Todos foram medicados, costurados ou engessados, conforme o caso. E eu ficava de enfermaria em enfermaria levando recados e informações, atendendo pedidos:

- Enfermeira, o Duda está pedindo água...

- Não pode, querida. Ele está tomando soro...

- Então tira ele de perto da minha mãe, ou ele vai deixá-la louca...

Aos nove anos, me sentia super-importante.

À noite, uma kombi-ambulância do ministério onde papai trabalhava veio nos buscar. Foi a pior viagem da minha vida. Kombi é um veículo meio esquisito, parece que tem o centro de gravidade móvel... A cada curva, eu achava que íamos capotar de novo. Até hoje tenho aflição de andar em vans.

Neste ponto, começam os fatos que justificam o título. Minha mãe e o Guto ficaram internados ainda alguns dias. Ocupavam o mesmo quarto. No natal, ele havia ganhado um brinquedo que tinha uma lampadinha. Pois ele conseguiu desmontá-lo e morder a lâmpada, enchendo a boca de caquinhos de vidro. Uma enfermeira veio ao seu socorro e conseguiu evitar o pior, limpando a boquinha dele com um pano úmido, antes que ele engolisse algum pedaço da lâmpada.

Passados alguns dias, minha mãe retornou para casa, com gesso na perna e um daqueles coletes que mantém o braço alinhado à altura do ombro. Desci com a nossa cachorrinha e, vendo um galão de posto de combustível jogado no campo de areia em frente ao prédio, resolvi fazer malabarismo. Deitei-o e tentei andar sobre ele. Não deu outra: caí sobre o braço, deslocando os ossos do cotovelo. Levada ao hospital, quase morri de tanto gritar enquanto o médico tentava recolocar tudo no lugar. Desistindo, ele decidiu operar. Anestesia geral, para desespero da mamãe. Tudo correu bem e, solidariamente, voltei para casa costurada e engessada. Mais: voltei decidida a estudar, já que minhas habilidades motoras e de equilíbrio haviam se revelado um verdadeiro fracasso. Jamais poderia fugir com o circo, por exemplo.

Logo depois, o Tonho, invejoso, conseguiu ser atropelado e enfaixou a perna.

Até hoje tem a foto lá em casa. O Duda, com gesso no braço direito, fraturado no acidente, eu no esquerdo e o Tonho, na perna. Sorrindo, os pestinhas!

E minha santa mãezinha lá, coitada, perguntando-se:

- Por quê, meu Deus? Por que eu nunca consegui usar pílula? Por quê?

Lembrei do Pedro Galuchi que escreveu "Criança, só na porrada...".

Aliás, confesso: se ele já não tivesse usado esse título aqui no Recanto...