E O DIA ERA O SEU

MÃE

Acordou mais cedo que de costume, deixou-se ficar indolentemente estirada por sobre a cama, ao seu lado, ainda a dormir, seu marido, que produzia um ruído irritante, contínuo, cavernoso, grave, semelhante ao ronco de um suíno; voltou-se para ele e lançou-lhe um olhar. Diante do quadro vislumbrado tentou esquivar-se à realidade.

Fazia tempo que não se detinha em observar seu marido, ele havia engordado e envelhecido, seu rosto apresentava sulcos, que partiam dos cantos da boca em direção ao queixo, o pescoço tornou-se uma parte fofa, que culminava em papos; tudo mais formava uma massa compacta de gordura. Fisicamente não havia mais atração entre eles e há muito ele a relegara a segundo plano em relação aos seus negócios, aos seus amigos e aos seus hobbies; por sua vez,ela jamais reclamou dele quanto à sua frieza, à sua distância, nem da falta de tempo para ela, quer emocional ou fisicamente, nem quando os seus abraços e beijos cessaram e os seus foram rejeitados .

Num gesto brusco levantou-se da cama, balançou a cabeça, como se com esse gesto pudesse espantar os pensamentos. Afinal, o dia era o das mães e ela se sentia intimamente feliz e desejosa de comemorar a data, não importando se alguém dentro daquela casa tomava interesse por ela e se punha fé na sua existência como ser dotado de vida própria. Trocou-se e arranjou os cabelos, sorriu para o espelho e se pôs a caminho da sala; buscou por entre uma pilha de discos velhos um long-play de Ângela Maria gravado em parceria com João Dias, colocou no toca-disco a faixa onde os cantores em dueto soltavam seus vozeirões e diziam que a mamãe era dona de tudo, era a rainha do lar, valia mais que a terra, o ouro e o mar...Arrepiou-se de emoção e se deixou embalar pela canção.

- “Mãe!!! Desliga essa porcaria, me deixa dormir!!!” – Berrou de dentro do quarto seu filho.

Havia esquecido que o coitadinho chegara tarde à noite passada, e cheia de remorsos desligou a radiola. O seu rapaz, aquela figura decorativa, sem planos, ambições e trabalho, carecia de silêncio para fazer o que só sabia: dormir.

Pra cozinha; na cabeça, a idéia de preparar uma suculenta macarronada.

De espírito desarmado, sorriso nos lábios e o desejo um tanto infantil de cantar parabéns para si mesma, entregou-se à tarefa de preparar a macarronada. Assim sua filha a encontrou, quando entrou na cozinha em busca do café; não a cumprimentou pela data, limitou-se a dizer que sairia em seguida, tinha compromissos com a turma do sindicato e não estaria em casa para o almoço.

Entendia sua garota, sempre preocupada com as questões sociais, com o bem estar do próximo, não lhe sobrando tempo para os seus, não passava pela sua cabeça nenhuma censura a bela filha, que mais parecia uma agitadora social, a fomentar greves, protestos, exigindo dos outros deveres e obrigações, sem, contudo, se dar ao trabalho do exemplo próprio.

Mesa posta, vinho na geladeira, macarronada no forno, filho dormindo, filha e marido, só Deus sabe onde.

Sozinha se serviu da macarronada, bebeu mais vinho do que convinha ergueu-se da mesa com dificuldade e em silêncio lavou a louça.

E o dia era o seu.

Zélia Maria Freire
Enviado por Zélia Maria Freire em 01/06/2008
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