EU, SOZINHO
Quando criança, lembro-me de estar sempre com alguém: minha mãe, meus amigos, meu pai menos... mas lembro-me também de brincar muito sozinho, com meus caminhõezinhos nos canteiros laterais da casa, administrando minhas fazendinhas. A Bel, que há 52 anos está em nossa família, antes como empregada, hoje como agregada, uma cabecinha branca muito amada, ainda diz que eu ficava horas assim, brincando sozinho. Mas lembro-me também que gostava muito de estar com a meninada do bairro, nos fins de tarde e nas intermináveis férias de verão. Como nunca gostei de futebol, nessas ocasiões brincávamos de “garrafão”, “cowboy”, queimada, pique-esconde e “cadeira-salvá”. Mais tarde, eu e o Júnior produzíamos filmes em papel de pão e os exibíamos para os amigos. Engraçado que naquela rua ninguém jogava futebol...
Depois veio a adolescência. Nova rua, novos rumos. Minha energia voltou-se toda para os estudos e os planos para o futuro. Nessa época, lembro-me de realmente estar sozinho, salvo nas noites de fim de semana, quando íamos, em bando ou em duplas, ao cinema, que era o nosso contato com o mundo e com a fantasia. Viajávamos realmente nos filmes que assistíamos. Um pouco mais velho, eu ainda ia ao cinema nas noites de quinta-feira, quando o Cine Odeon exibia filmes europeus. Nessas ocasiões, eu ia sozinho, porque já aí começavam as diferenças: meus amigos não tinham saco para aqueles filmes monótonos, geralmente em branco-e-preto e com enredos incompreensíveis. Aqui tenho que confessar um delito: eu tinha que falsificar minha carteirinha de estudante, porque na maioria das vezes esses filmes eram proibidos para menores. Mas eu era um inocente: não procurava neles nenhum apelo erótico ou pornográfico, mas queria mesmo era ter contato com uma realidade que os James Bond e os Thomas Crown não mostravam. E ficava fascinado com Bergman, Fellini e Antonioni.
Tinha então álbuns de filmes e artistas, oficiais, como “Os Dez Mandamentos”, “Ben-Hur” e “El Cid” ou os feitos com as fotos que vinham com balas compradas nas bombonières dos cinemas.
Assim, o cinema era o nosso contato com o mundo, estimulando nosso imaginário e nossas fantasias.
Entre filmes e livros, terminei essa etapa de minha vida, e fui fazer o curso pré-vestibular em Ribeirão Preto, juntamente com o terceiro científico. Morava na pensão da Dona Leonor, mulher boa, minha conterrânea, e nessa casa, tive momentos de intensa solidão e também noites de longas conversas no alpendre, tanto com as filhas da dona da casa quanto com os hóspedes. Morava comigo um amigo, mas logo nos desentendemos por infantilidades de ambas as partes, e passei a morar um quarto sozinho.
Foi um ano intenso, difícil, entre apostilas e livros. As conversas com os colegas eram apenas sobre o vestibular, e uma guerra psicológica se instalava. Ganhei nessa época uma gastrite que me acompanhou até os primeiros anos da faculdade.
Depois veio o vestibular e a aprovação numa faculdade que estava começando, eu seria da primeira turma da Faculdade de Medicina de Santo Amaro. Não queria ir. O bairro era feio, não tinha nenhuma estrutura para estudantes. E a faculdade, apesar dos professores do primeiro time da USP, funcionava em barracões de madeira num terreno enorme perto da Represa de Guarapiranga. Ao longo dos seis anos de curso, a escola foi mudando de cara, tendo se transformado no complexo universitário que é hoje.
Mas estou falando de solidão. E foi nessa época que eu achei que realmente fosse me sentir sozinho: fui morar na pensão da Dona Rosalina, uma portuguesa que foi uma verdadeira mãe para mim durante os oito anos que morei em São Paulo e em sua casa. Inicialmente, estranhei. Eu morava sozinho num quarto dentro da casa, e ela tinha uma pensão de vinte e quatro quartos nos fundos, onde moravam operários e rapazes que trabalhavam no bairro, em grande parte nordestinos. Nada a ver com a esperada vida universitária. No começo, tive uma tentativa de mudança, quando comecei a ter dificuldade para estudar porque o Sr. Martins, marido de Dona Rosalina ouvia a televisão em volume muito alto, pois era surdo. Cheguei a arrumar um quarto numa casa no Brooklin, mas quando disse à Dona Rosalina, ela logo deu jeito de levar a televisão para bem longe do meu quarto e assim proporcionar-me o silêncio necessário para meus estudos.
Vivi oito anos nessa casa, e só ficava sozinho se quisesse, pois quando sentia necessidade, ia para a ala da casa ocupada pela família de Dona Rosalina, e tinha longas conversas com ela, Sr. Martins, o neto Eduardo, o filho Nelson e a nora Mara. Nessas conversas, aprendi muito da vida e de Portugal, da boca de uma sábia senhora analfabeta.
Num período em que pensei que iria sofrer de solidão, tive a companhia de pessoas que marcaram para sempre a minha vida. Conversava sempre com a Sandra por cima do muro, e mais tarde fiz novos amigos, como a família do Sr. Zito, pai do meu primeiro paciente no internato do Hospital dos Servidores Públicos, a outra Sandra, e todo um pessoal que se reunia naquela rua do Brooklin nas sextas-feiras à noite para tocar violão e cantar. Esse pessoal eu conheci no último ano da faculdade e preencheu os três últimos anos que vivi em São Paulo. Antes disso, intercalava minha solidão com as idas ao cinema com a Sandra ou o Benê, nunca os dois juntos, por antigas querelas, já que moravam na mesma rua havia anos. Na faculdade, fiz poucas amizades, mesmo porque eu nunca podia seguir o ritmo dos meus colegas, quase todos paulistanos e ricos. Eu era da “ala dos pobres”, juntamente com o Benê, a Vera Paula, a Marília, a Eliete, e mais tarde, Beth e Arthur, esses não tão pobres...
Formatura, exame para a Residência, novas ansiedades.
Os anos da Residência voaram, entre enfermarias, estudos, plantões, e muito cinema e teatro.
Namoro à distância, que chato! Vontade de estar junto, solidão. Para se falar por telefone, demorava três horas para completar a ligação, isso uma vez por semana! E escrevia e recebia cartas...Disse Fernando Pessoa que “todas as cartas de amor são ridículas”...Brigas, voltas, noivado, casamento.
No período inicial, muita preocupação... Vida nova, novas responsabilidades, medo. Depois de três meses de tentativa, decidimos não mais morar em São Paulo,e por essas coisas estranhas da vida, apareceu uma oportunidade e nós nos mudamos para a cidade de Aguaí.
Muito trabalho, nascimento da minha filha, vontade de encontrar o pessoal do Brooklin, de tocar violão sexta-feira à noite... Eu não gosto de pescar nem de jogar futebol, meus amigos dessa cidade não gostam de Bossa-Nova... Nunca li tanto na minha vida... Tornei-me fã de Stephen King e Dean Koontz. Fui o primeiro da cidade a comprar um aparelho de vídeo-cassete, já que a cidade não possuía cinema. Fiz ali bons amigos, mas faltava algo...
Resolvi que não queria morrer naquela cidade, e decidi voltar para minha terra natal. O processo de mudança foi penoso, por muitos motivos, e até mesmo pelo vínculo afetivo com as pessoas que nos haviam conquistado, bons amigos que conservamos até hoje.
Voltando para Franca, iniciei um trabalho novo dentro da Medicina, e decidi que iria viver, que não iria ser apenas um médico, mas gente em primeiro lugar.
Aqui nasceu meu segundo filho, e a vida seguiu tranqüila.
Descobri que tinha alguns talentos até então meio encobertos: era capaz de cantar e também de falar em público, dar aulas e palestras e pude desenvolver esses dons, que me foram dados por Deus.
Descobri a magia do palco, onde, parafraseando Bibi Ferreira, sou intocável, mas ao mesmo tempo, nunca sozinho.
Viajei.
E rapidamente, passaram-se vinte e quatro anos. Não posso dizer que sou solitário, mas muitas vezes senti a falta de um amigo do meu lado, mas aprendi a valorizar minha esposa, meus filhos e os amigos que tenho, entendendo as particularidades de cada um, ainda que as minhas não sejam tão fáceis de entender... Afinal não deve ser nada fácil ter um amigo que não gosta de futebol nem de carnaval, mas que adora viajar, música erudita e MPB, música francesa (com uma queda inexplicável por Edith Piaf), jazz, música italiana e latina, teatro, principalmente musical, cinema, emociona-se em casamentos, está iniciando seus conhecimentos em Enologia e que ainda assim, como Maysa, sente-se “só numa multidão de amores”...
Hermes Falleiros
Terminada em 01 de junho de 2008.