SONHOS QUEIMADOS

SONHOS QUEIMADOS

DONATO RAMOS

do livro FOLHAS SOLTAS

A cidade de São Paulo ainda estava de pijama quando o incêndio já era bem visível. No final da tarde, na seção de informações da fábrica, um garoto estava pedindo alguma coisa.

- Não, menino... nós não damos assim, não! Só nas lojas. Aqui é fábrica.

Ali pelas nove horas da noite, tudo começou. Primeiro foi uma simples fagulha e, depois, as labaredas já lambiam o teto numa gargalhada só, cortante e funda. Na frente da fábrica, o garoto olhava sem piscar, pois ainda não havia compreendido a extensão daquilo tudo e da resposta do homem do balcão, quando perguntou se eles tinham brinquedos prá dar.

Grossos rolos de fumaça subiam aos céus e, numa estonteante coreografia fantástica, tomavam formas as mais diversas. Ora, um elefante de matéria plástica, ora uns cãezinhos lanzudos, brancos, ora um palhaço de rendas vermelhas no pescoço. O espetáculo da fumaça que dançava era único. Lá dentro os homens corriam, em todas as direções, com mangueiras compridas, com cadeiras, mesas, trabalhos inacabados. A fumaça continuava a subir e a descer. A subir e a dançar. Agora, os animais brincavam sobre uma bicicleta preta lá no alto. O povo se aglomerava em frente à fábrica que ardia incessantemente. Os bombeiros não davam conta do avassalador poder das chamas. A fábrica de brinquedos Estrela era devorada impiedosamente pelas labaredas. O fogo queimava milhares de sonhos infantis. Crianças que aguardavam os brinquedos de Papai Noel... Papai Noel que, à cada rolo de fumaça subindo, via os preços também subirem nas prateleiras das loja revendedoras. O Natal será mais pobre este ano. Pobre ano. Os prejuízos são incalculáveis. Os brinquedos já existentes custarão muito mais caro e muito mais crianças ficarão mais uma vez sem Papai Noel.

O Natal ainda está longe... mas criança não conta o tempo. Só sabe que bicicleta vermelha está mais vermelha e as cinzas a tingirão de negro.

Os animais peludos não existem mais. A fábrica queimou.

O garoto, vendo o espetáculo das chamas, olha para o céu.

- Por que fogem os brinquedos? Lá estão subindo... subindo... subindo sem parar e sem olhar para trás... sobem para o além...

Os brinquedos estão sendo devorados pelas chamas que não tiveram infância, porque já nasceram desse mesmo tamanho. Não sabem seu valor.

As crianças olham sem querer compreender que os brinquedos queimados não voltam mais.

A fábrica desapareceu com as chamas, os brinquedos que conseguiram se salvar através dos rolos de fumaça, o garoto sabe, e muito bem, foram brincar muito além do horizonte escuro da noite quente das labaredas.

Os brinquedos foram brincar no céu, com as crianças que morreram antes que tivessem idade para brincar na terra...

- Até que foi bom pegar fogo na fábrica da Estrela! Nem ligo!

DONATO RAMOS
Enviado por DONATO RAMOS em 01/06/2008
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