O frio do passado
Entardecer uma noite pode esconder mistérios sem fim. Foi nessa perspectiva que vesti meu casado e fugi (fuga? não tenho nem idéia do motivo de usar essa palavra, mas se ela veio, deve ter o seu propósito, assim como hoje eu tive o meu). O céu continuava a desabafar, caía aos poucos, e em silêncio, pois o chão, já cheio de sua glória, amortecia o fim de sua queda aos poucos. Quem um dia ensinou às crianças que existe neve mentiu; são só as nuvens desabando do céu, quando entendem que é mais seguro vir à terra abençoar os seres humanos com sua beleza, do que continuar estáticas (por favor, não digam que seus chocares são motivos, pois são somente reações). Distraído fui, como normalmente costumo ser. O frio intenso arrepiava meus pêlos, que reclamavam em silêncio, observando o tanto que era prazeroso pra mim ter aquela tarde; ser aquela tarde, e encontrar-me sozinho em minha própria solidão. Caminhei assim. Em um dado momento consultei o relógio, ora, mas que relógio? Não tinha eu mesmo dito a mim que o deixaria em casa? Quão ruidosos são os hábitos, quebram a monotonia do lugar por simplesmente se fazerem presentes em uma hora inadequada, em um pensamento inadequado, em um lugar que não tinha espaço pra lembranças nem reconsiderações... Mas ponderei que nada poderia ser demasiadamente fácil assim, porque o esquecimento é uma arte, e a lembrança um artista. Meus passos barulhentos caminhavam em silêncio; sagazes, sigilosos, sonolentos e por fim sonâmbulos (o quão belo é imaginar sem limites, e só a calma me traz isso). Quando voltei a mim vi um menino que cruzava a rua. Não, não era um mendigo; nem um pobre; nem irei retratar momento algum de miséria (por que quando pensam em mim só lembram-se disso?). Era um menino simples, de feição singular, talvez lembrasse algo do passado que eu não lembrava, não sei. Vi-o cruzar o destino quando cruzou a rua; rápido, ansioso, desesperado. O que poderia fugir tão rápido de sua vista? Segui-o como um ladrão que não queria roubar nada; fui calmo, leve, e por fim entendi. Quando ele parou, em frente à loja da saudade, virou para mim e disse: “não vá pai, você ainda não abriu a caixa de segredos que me deu, por favor, não vá...”. As gotas de suor desciam do meu rosto, olhei o espelho: já estava suficientemente velho pra sonhar assim. Olhei novamente o espelho, vi a criança que meu sonho trouxe, lembrei-me: era eu. Atestar que a chuva traz mágoas pode ser uma consideração a ser feita. O resto da noite foi frio