"Existe Em Todo Lugar..." =Crônica sobre um pentelho=
Passeando de bicicleta vagarosamente pela orla da praia, vi ao longe uma barraca de tamanho grande com várias moças vestidas de branco circulando dentro e fora dela. Percebia-se, no ato, que era uma daquelas campanhas de saúde, nas quais se mede a pressão de graça. Aproximei-me e vi que além de medir a pressão faziam também teste de diabetes. Desci da bicicleta, escolhi uma das cadeiras de plástico, sentei-me, e passei a ouvir com interesse a palestra de uma bela e simpática enfermeira enquanto segurava a bicicleta com uma das mãos.
Menos de cinco minutos depois chegou um velho magrinho, baixinho, peludo de um jeito que me lembrava escova velha, e encarou-me com jeito de bravo. Fingi que não percebia.
Logo ele se manifestou:
- Dá pra tirar a bicicleta do caminho? Quero me sentar.
- Vai sentar na areia por acaso?
- Não. Quero me sentar nessa fileira.
Vi logo que era apenas vontade de encher o saco. Estava cheio de cadeiras vazias ali e ele cismou de sentar-se logo naquela fileira. Puxei a bicicleta para trás, ele passou por mim, sentou-se ao meu lado e colocou a mão no queixo, com o corpo todo encurvado pra frente, assumindo um arzinho autoritário.
A palestrante voltou a falar e ele interrompeu:
- Está muito bagunçado isso aqui, moça. Gente que acabou de chegar já está sendo atendida. Não tem jeito de colocar ordem na bagunça?
Tive que rir. O cara acabou de chegar e já estava querendo botar ordem no poleiro.
- Meu senhor, nós estamos numerando os prospectos para organizar o atendimento.
- É bom mesmo. Do jeito que está não dá.
Autoritário mesmo o hominho.
A moça recomeçou as explicações e ele agüentou calado uns dois minutos:
- Aqui é tudo terceira idade. Tem que lembrar disso e não proteger ninguém.
A palestrante não respondeu nem olhou pra ele.
Mais alguns segundos calado.
- Olha o que eu disse. Olha lá: já estão medindo a pressão daquela dona ali.
Olhei para a furadora de fila e vi uma pobre coitada, com cara de estar nas últimas, sendo atendida em sua cadeira de rodas e não refreei o humor negro falando baixinho pra ele:
- O senhor não percebeu que estão tirando a pressão dela antes que seja tarde?
Outra moça, colega da enfermeira, aproveitou uma pequena pausa para comunicar que haveria um sorteio de brindes logo após a palestra e ele deu o ar da graça:
- Vai ter treta. Todo sorteio tem treta.
Quando a moça disse que muita urinação podia ser um sinal de diabetes ele interrompeu de novo:
- Nem sempre. Muitas vezes não tem nada a ver...
A essa altura o pessoal em volta já estava olhando feio pro miudinho e a palestrante, procurando ser cada vez mais paciente, já o olhava com certo ar de pouco caso.
Mais algumas interrupções e não me contive:
- Meu amigo, o senhor parece pulga... É pequeno, mas incomoda pra cacete.
- Quem o senhor pensa que é pra falar assim comigo? Sabe com quem está....
Antes que ele completasse a frase, tirei do bolso da bermuda minha carteira de motorista, vencida desde o ano passado, encurvei-a na mão, e aproximei-a do rosto dele, fazendo minha expressão mais brava:
- Satisfeito? Já sabe quem está falando com o senhor? Agora vê se fica quieto no seu canto. Quero ouvir a palestra em sossego.
O velhote não deu mais um pio. Pelo menos enquanto estive ali ele ficou bem comportado. Minha pressão deu 13 por 8 e o índice de diabetes 99. Disseram-me que eram índices ótimos. Do velho pentelho deve ter dado 20 por 25 de pressão. Estressadinho o “Escova Velha”, sô!
(Essa “carteirada” eu aprendi com um tio meu, lá de Minas, que uma vez, na falta de uma carteirinha, apresentou um calendário de bolso e o efeito foi o mesmo.)