TEMPOS DIFÍCEIS

Corria os duros anos 70 e a Polícia Federal, como todas instituições que possuíam ingerência na vida dos cidadãos, no país, tinha suas próprias normas, ou talvez seu jeito arbitrário de conduzir os deveres e direitos (?) dos homens de bem. Num destes dias de primavera, estava numa parada de ônibus, banho tomado, roupa alinhada, maleta sob o braço, à espera rotineira do transporte urbano. Nada que me estimulasse ou me deixasse alerta para as surpresas do cotidiano. Ao contrário, naquela tarde, especialmente, eu estava tranquilo. Coração quieto, sem muitas preocupações, a não ser pensamentos fugazes sobre a aula de filologia, que considerava um tanto monótona. À noite, a rotina se completaria com o trabalho na biblioteca da Universidade, mas naquele momento, nada me causava maiores devaneios. Tudo rotineiro, como um ritual elaborado sob normas pré-estabelecidas, quase medíocre. Meu companheiro de ponto de ônibus, um senhor que me parecia escriturário, ou balconista de loja de sapatos, nem sei porque me causava esta impressão, aproximou-se e reclamou do atraso do coletivo. Perguntou-me as horas e a pergunta ficou indefinidamente no ar. Repentinamente, um opala preto parou rangendo pneus, produzindo uma indefinível atmosfera de abafamento, de coisa fora do lugar, de inapropriação de espaço e tempo. Como subitamente nos roubassem aquele momento. Uma figura estranha que se interpunha entre nós, como um alienígena na sala de aula. Dois homens correram ao nosso encontro, mais dois no carro, rapidamente, armas em punho, exigindo documentos, questionamos, perguntamos o motivo, seguimos seus passos, entregamos carteiras de identidades, atravessamos ruas, entramos numa casa, quase barraco, invadindo o que nos parecia uma transgressão. Diziam-se da polícia federal, investigaram todos os compartimentos, imiscuíram-se em todas as fendas, todos os buracos, todas as frestas. Reviraram camas, derrubaram vasos, mastigaram flores, desfraldaram emblemas, espiaram livros, derrubaram estantes. Cavaram jardins, encontraram objetos e principalmente o tão almejado: trouxinhas de maconha. Mostraram-nos. Esfregaram em nossos rostos. Perguntaram se conhecíamos. Resposta negativa. Mostraram novamente, informaram, pediram que gravássemos na mente bem o conteúdo. Trouxinhas de maconha. Rapidamente, surgiu a noticia de que o homem procurado, se aproximava. Esconderam-se, nós mais atrás, apavorados, alienados daquele mundo brutal, do qual fôramos incluídos à força. Olhos à espreita, coração à larga, batendo desatinado. Um misto de revolta, raiva e pena. Piedade pelo que chegava. Raiva pelos que esperavam. Um deles correu ao encontro do homem e todos apareceram, cercando-o, algemando-o, levando-o ao nosso encontro, testemunhas forjadas no momento fortuito. A mulher que o acompanhava dobrou a esquina, com uma criança no colo. Ainda a vi afastar-se, dobrando os joelhos, acelerando os passos, fugindo. Mais umas muambas, e nada tão transgressor quanto àquela abordagem. Olhei por impulso para meu companheiro de ponto de ônibus e vi na retina o terror que se desenhava como máscara na fisionomia. Eu devia estar assim também. Em seguida, levaram o homem aos gritos, nós juntos, querendo afastar-nos, esclarecer de alguma forma que não tínhamos nada com isso, que não éramos testemunhas, que apenas estávamos cumprindo mais um dia rotineiro de nossas vidas, mas não podíamos. Fomos todos para o opala, no banco da frente, os dois primeiros homens que nos abordaram, no detrás, acolherados como animais de caça, eu, o prisioneiro, meu parceiro de espera de ônibus, e mais dois truculentos que ajudaram na operação. O opala cedeu nas rodas, mas voou rápido em direção ao centro de operações da polícia federal. Lá passei a tarde, sentado numa cadeira, ouvindo sugestões de como me deveria portar nos depoimentos, sendo a cada momento, importunado por policiais que impunham sua presença como garantia de que cumpriam o dever e precisavam de nossa assinatura. À minha frente, preso numa jaula, o homem algemado me olhava de soslaio de vez enquanto, forjando fumaça pelas ventas, acabrunhado, assustado, humilhado. Que estaria pensando naquele momento. Que eu ou o companheiro havíamos delatado suas atividades, se nem o conhecíamos? Estaríamos à mercê dos policiais que exigiam que disséssemos que havíamos participado de livre e espontânea vontade da operação e ao mesmo tempo ao arbítrio de um cara que poderia ser perigoso, sentindo-se ameaçado por nossas prováveis declarações?

Refleti sobre tudo isso naquela tarde. No dia em que finalmente fui chamado para depor, fiquei frente a frente com o preso. Meu amigo, desesperado, desapareceu do mapa. Acho que agiu certo. Ao entrar no gabinete onde se daria o depoimento, um policial que participara da operação, me advertiu, com um olhar sinistro, convenientemente interpretado para compor o teatro de seus propósitos arbitrários. Afastei-me dele, fechando a porta atrás de mim e sentei-me numa cadeira, próxima ao escrivão, defronte ao juiz e tendo o olhar fixo do homem considerado culpado. Fiquei entre a cruz e a espada. Uma lá fora, na ante-sala. Outra aqui, quieta, esperando o resultado, desafiadora. Olhei para um lado, para o outro. Aquietei-me. Observei os procedimentos. Ouvi as considerações, as perguntas e iniciei o meu depoimento. Decidi ser eu mesmo, talvez agora um desafio inconsciente ao sistema injusto que não protegia o cidadão e punha-o ao alvitre de decisões ditatoriais. Declarei ao juiz em sonora expressividade, que estava ali subjugado a uma espécie de despotismo. Na verdade, eu estava ali prestando um depoimento sobre uma pessoa que desconhecia completamente, nunca a tinha visto, nem sabia de suas atividades, nem onde morava e nem ao menos tinha qualquer interesse sobre sua vida. Neste momento, o juiz deixou os óculos caírem-lhe ao queixo, o escrivão parou de datilografar por um instante e ensaiou um movimento no ar, quase etéreo, um tanto feminino, como se não acreditasse no que estava ouvindo. Do outro lado, pela primeira vez, o algemado levantou os olhos e me encarou detidamente. Acho que até que suspirou aliviado. Ouviu-se um leve zum-zum-zum, o juiz limpou a garganta, o escrivão deitou o cotovelo direito na barra de espaços, produzindo um som arrastado de engrenagens, os guardas encostados à porta se mexeram, aliviando os ombros, olhando-se em atitude comprometedora. O juiz me olhou afetuoso. Quase balbuciou com voz suave: _Por favor, continue. Eu prossegui, enfático, desta vez, referindo-me aos policiais que me abordaram. Considerei que infringiram a lei, porque eu não queria invadir casa alguma, muito menos ser forçado a perder a aula, além disso, haviam tomado o documento, o que me obrigou a segui-los. Não concordava de forma alguma com aquele procedimento. Nisso, o juiz interrompeu o meu depoimento. Fez uma versão bem simplificada para o escrivão, que batia trêmulo nas teclas metálicas. Dispensou-me imediatamente. Respirei curto. Ali, estava livre, mas lá fora, o que me esperaria? Atravessei a porta, passos incertos, pernas meio bambas, joelhos quase batendo um no outro, encarando por alguns minutos os dois policiais que me acenavam, sustentando presença, reafirmando que me conheciam e que eu cumprira o meu dever. Acenei afirmativamente e me afastei rápido dali. Nunca mais vi o companheiro de parada de ônibus. Aliás, nunca mais esqueci o endereço da casa que ajudei a investigar. Tempos difíceis. Tempos em que se engolia em seco e se fingia que a autoridade era competente, como se dizia na época. Mas, na verdade, competência é apenas uma expressão que informa relatividade. Depende a que competência nos referimos. Minha vida não mudou muito. A rotina não foi novamente despertada, mas ficou um gosto amargo de derrota, de humilhação, de no fundo, ter-se a certeza de que a verdade expressada, fora maquiada para conservar o sistema e tudo que se dissera não passara de páginas em branco. E ainda há quem tenha saudades daquele tempo.

Gilson Borges Corrêa

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