A digna profissão de ferrador
Por: António Centeio
Patacão é uma pacata aldeia situada algures nas margens do Tejo. Povoação esta com cerca de umas duas mil almas. Nela vive Camilo Santos alcunhado já vai para algumas dezenas de anos por “Camilo Serra-Cornos”. Possuidor e respeitado pela sua profissão que de tão nobre ser, tão poucas existem por terras do interior. Todos que precisam dos seus préstimos o conhecem. Vem dos confins do mundo em busca da perfeição daquilo que aplica quando executa o melhor que sabe fazer: «ferrar bestas» assim apregoa Camilo.
Casado, já vai para sessenta anos com a Milinha, formam um casal de anciãos, fazendo inveja a muitos outros. Não há nenhuma excursão domingueira que a D. Noémia leve a efeito que não conte com a presença dos dois. No autocarro a viagem é de alegria contagiante. Cantam e dançam, valendo o casal por todos os acompanhantes, porque este «dia de descanso é para passear». Nos outros, Camilo trabalha que se farta. Ainda o Sol se esconde do lado de lá da maracha já ela deu de comer ao gado como tomou o «mata-bicho» para ter forças quando inicia as actividades ligadas à sua profissão. Esta exige-lhe a máxima atenção e esforço, porquanto de vez em quando «uma besta tresloucada teima em dar coices». Como só ele sabe da arte, tem que se resguardar a si próprio, pois nas «redondezas não existe tamanho entendido». Sabe que quando «partir para o outro lado» os clientes se vão ver aflitos para encontrar quem lhes faça aquilo que só ele sabe e pode.
Não tem medo do trabalho que «está para durar». Apenas o assusta, como à sua companheira, os dias invernosos por causa do barulho que os salgueiros teimam em fazer quando o Vento os apoquenta. «raio de árvores que se dobram até ao chão mas nunca quebram». Até parece que o «diabo anda à solta por estas bandas parecendo com que o”siroco” quer levar tudo que encontra pela frente».
Quando vai à Sede da vila, todos o cumprimentam, mesmo sabendo que alguns lhe acenam por causa da sua profissão e da alcunha. Talvez desconheçam é que Camilo vai lhes tirando do bolso a sua subsistência, permitindo-lhe levar o resto da vida desafogado e rindo-se para dentro de si com o pensamento daquilo que só ele sabe mas que não diz a ninguém.
Na lista de clientes, que têm como “fixos” contam-se a continuidade semanal de «doutorados e ilustres agricultores. Nos dias que correm ter uma burro ou um cavalo é sinónimo de riqueza». Desta fartura vive Camilo e aqueles que dele dependem. Alguns de bastante longe vêem. Outros para se destacarem, mandam os motoristas buscar o ferrador que para o efeito se faz «acompanhar do ferramental para nada falte» a quem tão bem paga».
Recentemente apareceu no Patacão um idoso, vindo do Norte, procurando por quem lhe valha no arranjo do seu animal: «por causa da falta de ferrado, dia após dia só faz coxear».
Logo chegado, entrou na barbearia do senhor Canoso perguntando pela residência do curador, de quem já a algum tempo tem ouvido dizer as melhores alusões. Dos presentes, respondeu o habitual pândego das redondezas: «amigo, não tem nada que errar. Logo que chegue ao largo da igreja, na primeira casa da esquina é ai que mora o “Serra-Cornos”».
O desconhecido pasmado com a alcunha interpelou o falador se na verdade «esse é o nome de tal ilustre?». O gaiteiro com uma cara a puxar para quem gosta gozar com o azar dos outros, afirmou-lhe: «É sim senhor. Descanse porque é assim que o dito é conhecido por estas paragens. Poucos sabem de seu nome verdadeiro. Quando bater à porta, chame-o pela alcunha».
O pobre homem desconhecedor das partidas de tal brincalhão, assim fez. Logo localizada a habitação, bateu no velho postigo, aparecendo-lhe então a Milinha que lhe perguntou: «que deseja vossemecê a estas horas?». Disse-lhe então o forasteiro: «é aqui que mora o “Serra-Cornos”?».
Milinha, olhando bem olhos nos olhos o viajante, dando a impressão que não estava a ouvir bem a pergunta, educadamente volta-lhe as costas, para gritar de seguida bem alto para o marido: «Camilo vem já à porta que está aqui um desalmado que os quer serrados!»
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