ÁLVARO, OFÉLIA, FERNANDO
Álvaro de Campos se intrometeu e destruiu o romance entre Fernando Pessoa e Ofélia Queiroz.
Amar um homem sabendo que ele nos ama e que também é outro que nos odeia.Perceber, aos poucos, que esse outro vai ganhando mais e mais força, nos exilando daquele que, nele mesmo, nos ama: saber também, que somos uma e apenas uma. Conviver com essa inalienável unidade e, tendo somente dezenove anos, nos sentirmos obrigada a compreender a dualidade essencial do ser amado e aceitá-la, a esta dualidade que é, de certo modo, a nossa sentença de morte.
Álvaro de Campos venceu. Paladino da Literatura, guerreiro da Palavra, ganhou definitivamente Pessoa para si e para Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Bernardo Soares e outros mais. Para isso, Ofélia teve que ser sacrificada. Hamlet português, Ofélia portuguesa que não enlouqueceu, guardou durante muitos anos, no anonimato e na clausura de um cofre, as cartas de amor de seu Poeta. Durante quinze anos esperou por ele de algum modo, esperou por uma rendição de Álvaro de Campos e dos outros a Fernando Pessoa, na verdade a um outro do Fernando Pessoa ele-mesmo, como se auto-intitulava, apenas mais um heterônimo. Esperou em vão. A Literatura venceu. Ganhamos todos. Algo se perdeu? Quem o perdeu? O que teria sido se, em determinado dia de um distante outubro do começo do século XX, Fernando Pessoa não tivesse dado à luz Álvaro de Campos? E se este, nos dezenove anos de Ofélia, não tivesse manifestado a força e a vontade implacáveis que afastaram Fernando de Ofélia? Teria havido a Obra que houve? Afinal... o que teria havido se o grande poeta tivesse optado por viver ao invés de navegar...e navegar...e navegar...
Só temos o que temos, só existe o que existe e em mim esta repentina dor quando penso naquela musa quase adolescente, a tomar parte, meio sem consciência, de tal batalha entre o amor e a palavra, entre o destino de Poeta e o destino de homem. Venceu a Poesia. Vencemos nós. Perdeu Ofélia? Perdeu Fernando? Toda e qualquer resposta se esvai sem deixar rastro. Venceu a Literatura, para a qual os nomes e os destinos pessoais não têm a menor importância.