POST-SCRIPTUM - Berenice Heringer

Na cena anterior, a cortina se fechou e os personagens ficaram mudos esperando nova chance. Acho que me perdi também, querendo explicar minuciosamente uma virtude tão cara ao cristianismo. A misericórdia, para ser praticada, demonstrada, requer disciplina e persistência. É um valor de dentro, para se praticar consigo mesmo.

Vamos ao finalzinho da fala anterior onde cito FWN, ele que foi um dos mais argutos críticos da religião, da moral e da tradição filosófica do Ocidente. Polêmico e contundente. Foi um filólogo antes de ser um filósofo. Disse: "não pretendo erigir novos ídolos; basta-me que os antigos aprendam comigo o que signigfica ter pés de barro. Não vos deixeis esmagar por uma estátua." Isto foi há 120 anos.

Claro que existe um tipo de caráter que não se coaduna com o demolidor Nietzsche. Ele luta contra a mentira de milênios e a decadência da cultura ocidental. Fala sobre a compaixão. Creio que tem o mesmo sentido da misericórdia. "Tem o nome de virtude somente entre os decadentes. Os que sentem compaixão perdem facilmente o pudor, o respeito, o delicado sentido nas distâncias...Por vezes as mãos piedosas podem ter efeitos desastrosos sobre o destino e sobre feridas não cauterizadas, sobre o privilégio de suportar uma grave culpa. O objeto não pode ser contaminado pelos impulsos, muito mais humildes e escassos que se fazem sentir nas ações altruísticas".

Ele foi um pré-freudiano, um precursor de Freud. O conceito de objeto aí é psicanalítico. A recordação é uma ferida a superar. A maior pena a ser inculcada é a culpa. Nem carece da punição. Dostoiévski já sabia disso em Crime e Castigo.

O estado do enfermo é um atroz ressentimento. E os mandamentos religiosos são complicados. Os que sabem o Catecismo e o Decálogo de cor se consideram santos? Mesmo que não pratiquem as virtudes ou atropelem as proibições? É melhor pensar na empatia do Daniel Goleman, a capacidade de se colocar no lugar do outro numa situação hipotética, sem nenhuma invasão de privacidade. A prática da compaixão e da misericórdia podem virar promiscuidade quando se pretende tomar as rédeas da vida do outro. Quem toma as rédeas comanda, pode querer esporear. Fico um pouco perdida nesse mundo atual.

Há fingimento, intolerância, polêmicas, exibicionismo. Os que foram incentivados a não levar desaforo para casa soltam as bombas e granadas sobre qualquer transeunte.

George Orwell é um escritor ficcionista, mas especialista em comportamento humano. Na obra de sua autoria Na pior, em Paris e em Londres, ele foi ser mendigo, largou tudo e virou andarilho e pedinte nessas capitais européias. A cada dia, a pousada num albergue diferente. Comeu o que eles comem: pão com margarina. E eles zombam dos caridosos que promovem as sopas dos pobres, os chás beneficentes, aqueles fingidos que têm muito e gostam de aparecer, um orgulho espiritual enorme, a filantropia como um ensaio para mostrar o abismo entre as classes sociais. Os mendigos, e também os loucos, não são burros. Assim como são "enquadrados" na pirâmide social, ele sabem direitinho como classificar os exibicionistas que posam de caridosos... Hasta la vista, baby!

Vila Velha, 23 de maio de 2008.

Berenice Heringer
Enviado por Berenice Heringer em 26/05/2008
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