MANUSCRYPT - BereniceHeringer

Quando as ilusões caem a gente despenca junto. Hoje se cultiva o coitadismo. Os trágicos relatos pessoais viram uma Ecologia. Um bate-estaca que ecoa, reboa e reverbera. A sonhadora querendo ser. Uma boba, uma trouxinha de molambos que cai na lábia de um malandro pela octogésima vez. Orgulhosas, idealistas, querendo encontrar o tal de Outro que vai atravessá-la nos ombros sobre a correnteza bravia do Estige, o circular rio da Vida que vai do Céu ao Inferno. O Outro não é barco nem muleta. Agora o corpo é usado como instrumento para tudo, principalmente para seduzir. Uma caneta para se escrever, sem tinta. Uma lamparina sem óleo e que não alumia a senda do porvir. Ser perfeito não adianta nada. O invólucro. Esta palavra é como luva mitene. Me tienes, pero yo no vos tengo. Investe-se no lucro incerto. A perfeição não existe. É uma utopia, um idealismo, é todo mundo virando Tristão e Isolda, aquela melancólica lenda nas charnecas da Cornualha...

Como seres relativos não sabemos lidar com valores absolutos. A neurose do perfeccionismo é a pior praga. O auto-apoio emocional cada um se concede como pode.

Veja as balelas nas armadilhas do senso-comum idealista: Errar é humano. Fazer o bem sem olhar a quem. Parecer não é ser. A 1ª é um incentivo ao erro, uma justificativa para se permanecer na mediocridade. Errar é dar uma topada. Animal irracional não tropeça...

A 2ª está exortando a ser bonzinho com um beiramar e um abadia, ou o monstro da áustria...

A terceira é o suprassumo da hipocrisia. Todo mundo está investindo pesado na aparência. Temos de retirar o não e aí fica perfeito: parecer é ser. Perecer. Perecimento. Creio que a falência múltipla de órgãos, um atestado de óbito, começa a vigorar em vida. Não estar falecido, mas falido. Ou flácido. As vontades submersas. Os gostos encangados, atrelados.

Como é que a sociedade tão hipócrita continua a adubar essas ervas daninhas de inverdades coniventes e ao mesmo tempo rezar por um catecismo medieval que as abomina? É passar uma carraspana e fazer um cafuné no cangote. Morder e assoprar, como fazem as baratas.

Vamos ver a palavra MISERICÓRDIA, uma das mais endeusadas no manual das virtudes judaico-cristã-ocidentais. A etimologia revela ser derivada de miséria: sf, estado lastimoso, indigência, penúria, avareza. E aí vamos abrindo alas para o cordão das entidades: comiseração, comiserativo, até culminar no majestoso out-door da misericórdia. Orgulho.

O misericordioso é um avaro? O prefixo latino é immser=immisericordia, o mesmo em imane, imanente. O 1º é um adjetivo e significa mau, cruel, feroz, medonho, terrível. O 2º, também um adj. para 2 gen: que existe sempre num mesmo objeto e é inseparável do mesmo. Um verbo no partic. pres., atual gerúndio, de immanere, permanecer, ficar, parar em. Então, a misericórdia o quê é? Vamos ao final, decompondo-se o vocábulo cor-cordis= coração, sem a vírgula é uma locução e quer dizer aprender, saber, decorar. Em coração, principal órgão do aparelho circulatório do homem e dos animais superiores, é também sinônimo de ânimo, coragem, vontade. Descoroçoar é desanimar. Os matutos dizem discorçoado.

Ah! nossa complicada e rica linguagem! Nesse grande baú de letras e palavras mergulhamos e não temos como voltar à tona. Às vezes os copistas e manuscritadeiros medievais se afundavam em devaneios, delírios e devassidões, como em O Nome da Rosa, obra-prima de Umberto Eco, que li três vezes e tenho de ler mais umas dez...

Agora, depois dos transplantes e implantes de órgãos, provou-se que o coração não é a sede dos sentimentos. Como já se transplantou fígado, pulmões, rins, viu-se que tembém não é por aí...A lengalenga continua. Fulano tem bom coração, ou tem maus bofes, os rins são empedrados. Porém os ódios continuam figadais, as cabeças duras como esferas de rolamento. Vou encerrar porque o espaço acabou. Mas voltarei... Vila Velha, 22/maio/2008.

Berenice Heringer
Enviado por Berenice Heringer em 26/05/2008
Código do texto: T1005737