AS ESCANIFRADAS - Berenice Hering

Os escritores, autores, dramaturgos e poetas são os déspotas esclarecidos de sempre, mesmo nesta era obscurantista do terceiro milênio. Definitivos, autocratas, absolutistas. Criacionistas, claro! Poderosos que criam, inventam, aniquilam. A Literaura é o mix no caldeirão de deuses, bruxos, xamãs. A oficina de Vulcano é tomada de assalto e forjam-se tipos, caras, personas e pombas-giras. Girândolas num parque de diversidades e de cenários magi-rústicos em montanhas-russas, chapéus-mexicanos, túneis-do-terror...

Meu amigo Samuel Duarte é capixaba e romancista, um dos nossos mais iluminados. Seus personagens ele os coloca na olaria de Josué ou no atelier de Da Vinci. Um padre pode transformar a hóstia em excomunhão. Meu pai gostava muito de xingar desgraça e excomungado. C'est la même chose, pois aquele que não merece a graça não participa da comunhão. SD coloca na boca do seu padre-personagem em As Duas Faces de Eros este acinte: "as crônicas são cocô de cabrito". Aceito a fala do mestre na boca do coadjuvante. Tudo no contexto, bem urdido na trama desta roca-tear criativa vira seda e cetim.

Também me apresenta uma velhinha inglesa escanifrada, aquelas que são o protótipo da Miss Marple de Agatha Christie e de outras, filigranadas sob a talentosa pena de Barbara Cartland, avó postiça de Lady Di.

Hoje, de volta do supermercado, comecei a me sentir personagem nesses romances dessas escritoras anglo-saxãs. É assim mesmo o plural deste adjetivo feminino composto separado por hífen? Sei não...Acho que estou ficando escanifrada. Aquela velhinha valente que não dá o braço a torcer, mas que faz reposição de cálcio, pois tem muito medo da osteoporose. Que tem miopia mas não pode fazer a cirurgia corretiva a laser. E que ingere cápsulas de ômega 3 com medo de artrite, artrose e muito pavor dos dedos em gadanho das anciãs, que não poupam nem as sensíveis e talentosas mãos de uma dama gloriosa como a Cleide Yáconis. Gadanho é gancho. Dedos em garra, como aves de rapina, águia, carcará, condor. Sem duvidamente, na idade do Con-Dor viramos consumi-dores e carreamos nossas aquisições módicas e nossa planilha frugal como uma ovelha carrega sua lã escassa que não a protegerá do frio rigoroso que vem vindo...

O embalador no caixa, também um sexagenário, que quer se aposentar no empacotamento, isto é, antes de empacar e ser empacotado, disse, na sua sabedoria baiana aflorada na madureza: "meu pai dizia que a lã não pesa ao carneiro"...

Mas o Samuel Duarte faz seu personagem principal no romance, um meritíssimo doutor juiz, dar de cara com uma inglesa escanifrada num cais de porto inglês. Seria em Calais ou próximo à ponte de Waterloo, onde Napoleão perdeu a batalha? Mas dizem que a posição em que ele capitulou mesmo foi na brincadeira de médico...

Salve os omnipotentes, omnividentes e detentores do dom da ubiqüidade, os urdidores de tramas e desenredos, todos os escritores do mundo! E Ave! meu amigão Manoel Lobato, de Açaraí, cantinho de Pocrane, zona da Mata Mineira, que criou a pérola Sacrossacanagem. E todo dia ingere uma gotinha de cicuta no seu chá doméstico. E vai resistindo bravamente e aparece no caderno Magazine de O Tempo, todos os dias da semana, menos um.

Vila Velha, 22 de maio de 2008.

Berenice Heringer
Enviado por Berenice Heringer em 26/05/2008
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