INFELIZ, INFELIZ MESMO, NUNCA FUI!

INFELIZ, INFELIZ MESMO, NUNCA FUI!

(2006)

do livro FOLHAS SOLTAS

Na verdade, tive até uma bicicleta. Preta e meio descascada, mas era uma bicicleta. É verdade, também, que a corrente saía à-toa, mas eu sabia consertar na hora. Pra isso eu era bom. Também era bom engraxando sapatos na esquina onde os ônibus paravam em Paraguaçu Paulista. Na estação da estrada de ferro, quando passavam aqueles enormes trens, com cinqüenta ou sessenta vagões cheínhos de nordestinos, com destino ao Norte do Paraná, eu vendia sanduíches acondicionados num tabuleiro pendurado no pescoço. Não sei se dava resultado financeiro, porque nunca fui bom em matemática e não sabia direito o valor do dinheiro. Muitas vezes os cabeças-chatas pegavam o sanduíche bem na horinha do trem partir. E lá ficava eu com o prejuízo. Claro que aprendi! E tinha vezes que eu só dava o sanduíche depois de receber e o trem partia. De longe ainda ouvia os gritos do infeliz que ia passar fome até a estação seguinte. Quem mandou ser besta!

O importante é que era infância, ainda. E o importante era só isso, porque não tinha outra coisa.

Não me lembro muito bem de muitas coisas que queria lembrar. Ah! Um dia, meu pai arrumou um emprego pra mim. O primeiro. Ia ajudar um alfaiate a desmanchar barras de calças usadas, pra reformas. Na segunda calça, perdi o emprego: cortei a calça ao invés de cortar a linha no desmanche da barra. Fui vender tecidos nas Lojas Riachuelo e acabei locutor do serviço de som volante da empresa.

A vizinha do lado era portuguesa e tinha um pé bastante grande daquela fruta cheia de lados, uma tal de carambola. Vendia em cestas, de porta em porta. Depois, locutor do “serviço de alto falantes Cacique, o porta-voz radiofônico da rodoviária”, passando a ler “A hora da Ave Maria” na Rádio Clube Marconi de Paraguaçu Paulista.

A minha primeira professora, Dona Terezinha era de uma família rica, o pai médico e fazendeiro na região de Presidente Prudente. Um dia, veio a proposta: “Donato, você vem morar com a gente. Eu não tenho irmãos. Você fica sendo meu irmãozinho...”.

Êta, resposta besta a minha: “Não deixo o meu pai, nunca, professora!”.

Não sei porque, também, estou forçando a cuca pra lembrar das coisas. Isso não leva a nada, mesmo! Já sei: quero fazer uns exerciciozinhos literários, contando histórias. Ao invés de inventar, o que é mais difícil, vou contando coisas que já sei porque aconteceram comigo.

Não sei se relevantes, mas o problema de contar é meu, não teu, não é mesmo? Luiz Arrezi foi meu professor primário também: meu diploma tem dedicatória sua! Sei lá dele, nem da dona Nely, bicho em química, física e outros bichos incríveis e problemáticos. Problemático era seu marido. Seu Polimeno era, acima de tudo, um gentleman: um dia foi lá em casa, levar um uniforme todo cheio de botões – como eram os uniformes escolares da época – dizendo que o uniforme era meu. Que, agora, de uniforme, eu poderia a voltar pra escola. Sei que era mentira, aquela história do governo ter mandado. Governo nunca mandou nada de graça pra ninguém, principalmente pra pobre. Foi ele quem pagou o alfaiate. Qualquer hora me lembro de alguma coisa dos outros. Vou, agora, apenas catalogando: o Zé Ferreira Martins – a última notícia dele veio dos Estados Unidos, faz uns dias... (uns trinta anos mais ou menos...) e o Antoninho Machado eram os parceiros no Trio que formávamos cantando “Vento que embalança as faias dos coqueiros...”.

Chegamos a cantar no clube da cidade. Era uma festa beneficente. A renda era pra gente assim como eu mesmo! Falar em Zé Ferreira, dona Elvira, sua mãe, fazia bolinhos de chuva. Toda vez que chovia, eu ia lá.

Teve uma boa no cinema da cidade. Era a nossa formatura do Grupo Escolar. Primário também fazia formatura naquela época. Eu, orador da turma. (Gozado, me lembro: fui orador do primário, do ginásio e do curso de Contador que existiu no passado).

O terno branco, ah! O terno branco! Que drama! Ficou na cadeira da sala, esperando o outro dia, o grande dia da formatura. Choveu. Manchou nas costas. Aquela roda amarela da goteira. O inteligente do meu pai encheu de talco. A mancha sumiu.

Veio a hora do discurso.

Sala cheia. Eu, importante! “Senhoras e senhores...” E dá-lhe procurar nos bolsos o raio do papel com o discurso. Ficou em casa. Fui em frente. Ineditismo: um discurso de moleque, feito de improviso! Fato totalmente novo! De tanto ler, decorei. Sucesso, também é assim, às vezes! Pena que não dá pra ir decorando sucesso pelos anos vividos...

Mas e o paletó branco? Desculpe. Dado o sucesso do discurso, os tapinhas nas costas. Aí é que começou o drama. Cada palmada nas costas, um tufão de pó branco que subia. Era o talco seco, se dismilingüindo.

Fui pular a cerca pra assistir o espetáculo do circo. Quando pulei para o outro lado, caio de joelho na ponta seca de um mamoeiro cortado. Com medo do hospital, escondo do pai o acontecido, até começar a ficar podre o joelho. Também, não tinha mãe pra ficar olhando a gente! Quer dizer, tinha minha irmã. Mas ela vivia olhando pra funilaria em frente de casa, onde trabalhava o namorado. Hoje ela é a escritora Maria Paula e ele, o Osvaldo, de terna lembrança.

Outro dia, brincando de lutar espada, me entra a ponta da espada do outro na minha boca. Na pele interna, do lado, entra ar.

Cresceu a bochecha.

O dentista disse que era um dente que precisava arrancar. Está me esperando lá até hoje! Que cara mais sem “cepe-éfe”. (CPF, lógico, não existia! Queria dizer outra coisa que não me vem à mente).

Meu pai era barbeiro e comprou um bar. Antes de beber quase todo o estoque, vendeu fiado. Nunca mais recebeu do turco que vendia “carne de onça” que ficou rico vendendo os seus sanduíches de carne moída com cebolinha verdade. Ali eu fazia jogo do bicho, sem saber que bicho era qual número. Ninguém ganhou comigo!

Depois, meu pai melhorou de vida e comprou umas três casinhas pra alugar. Ninguém pagou o aluguel.

Era tão bom de negócios, o meu pai, que perdeu tudo e voltamos a pagar pra morar num bairro chamado Barra Funda.

Aí, o velho, no seu salão, passou a fazer permanente na mulherada.

Era a moda. E como o velho gostava! Melhor que fazer barba nos marmanjões. Aquele velho não era bobo!

Lembro-me: na vizinha, único lugar que tinha rádio, toda a vizinhança ia ouvir, em meio aos chiados, a novela da Rádio Nacional, O Direito de Nascer, com o Albertinho Limonta e toda a tropa!

Matei passarinho, sim senhor! Mas matei só um. Enforcado numa varinha que a gente entortava e prendia no chão, com milho espalhado. O passarinho vinha comer e já era.

Quando vi o passarinho pendurado, me olhando, jurei que nunca mais ia caçar. Acho que aquele passarinho era o presidente do sindicato dos pássaros: pago até hoje a aventura sinistra.

O quê mais? Pouca coisa.

Parece que infância e juventude naquela época, entre 45 e 55 (já era 1900, por certo!), não tinha muitos atrativos.

O brinquedo era a gente que construía... Os carrinhos de rolimã, também. Ah! Tinha jogo de bolinha de gude. Pura sacagem: fazíamos o buraco, interligado com um tunelzinho. Convidava pro jogar. O gajo “embibocava”, ou seja, a bolinha caía no buraco e corria pelo túnel. A gente dizia que, por azar era um formigueiro. Enchia o buraco embaixo de bolinhas.Quando comecei a tomar cerveja íamos pro boteco do português.

Pô! Parece que só tinha português em Paraguaçu. ! Pois bem. O português comprava as garrafas vazias que nós levávamos, trocando por garrafas cheias. Acontece que as garrafas vazias eram dele mesmo que a gente pegava no corredor. Quem continuou com essa prática transformou-se em grande político!

Ser criança... que bom! Passava fome, é verdade! Mas que era divertido, era.

Ah! Se era! Quase me esqueço de contar que não nasci em Paraguaçu. Seria, na época, muita mordomia nascer em Paraguaçu, mas ali perto, numa cidade chamada Echaporã, onde nunca o prefeito me convidou a visitar depois que cresci e ficar um pouco famoso pelos livros editados.

A noiva que ficou por lá, sei lá se esperando retorno, era Eunice. (Seu irmão, Osvaldo Büchler, fabricou o meu primeiro microfone).

Voltando, trinta anos, ou mais, fui visitar a família. Fiquei sabendo: o marido dela se chamava Donato. Êta, vidinha engraçada!

Aí, já descobri como é engraçado voltar nos passos já andados.

Chega um dia em que você pensa voltar.

E fica naquela expectativa de rever ruas, pessoas, carro, clubes, cinemas, praças, casas...

Quando retorna, leva um susto. Decepciona-se. Fica triste.

As pedrinhas das ruas estão pintadas com uma gosma preta, as varandas ruíram de tão velhas.

A cor das casas, que ainda teimam em ficar em pé, já não são das mesmas cores, as mocinhas estão enrugadas e avós, ou freiras, ou putas – isto se você as reconhecessem -, o padre morreu, o juiz foi preso, o prefeito é o neto ou bisneto daquele prefeito que você conheceu de longe, as árvores tão lindas, têm os pés crescidos e estão arrebentando as calçadas com suas compridas unhas. O gandula do time é o presidente de honra, com foto em preto e branco na parede carcomida da sede do clube, o riacho - chamado Burrinho - onde você nadava hoje é um balneário onde só entra sócio, o pátio das toras em frente à estação do trem , onde você jogava bola feita de bucho de porco, ou famosas bolas de capotão que algum amigo rico tinha, não existe mais.

Olha, amigo: é um saco!

Voltar é coisa que não se deseja a ninguém.

Quer voltar?

Volte você!

DONATO RAMOS
Enviado por DONATO RAMOS em 26/05/2008
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