"Pedalosofia" = Pedalando e pensando=
Pedalar é bom. Pedalar em Santos, em um feriadão, é bom demais. Por muitos quilômetros seguidos a gente não sai da ciclovia e pode ir na velocidade que quiser, ou até quase sem velocidade alguma. Os outros ciclistas ultrapassam numa boa, sem fazer cara feia, sem reclamar, sem stress. E a gente pode ir pedalando e reparando, pedalando, reparando e pensando. Ou ainda pedalando, reparando, pensando e observando a vida à nossa volta. Podemos observar tranqüilamente as figuras que passam por nós, as expressões faciais de cada uma, o jeito que cada uma tem de conduzir sua bicicleta, e ao mesmo tempo curtir a paisagem linda em um dia de sol maravilhoso como hoje.
Agora consegui regular o meu selim na altura certa, e minhas pernas não se ressentem mais do esforço contínuo. Aprendi que cada uma das pernas tem que ficar totalmente esticada ao baixar todo o pedal para que o esforço seja menor e que não haja dores nos joelhos. A coluna reta também é essencial para pedaladas não cansativas. Pedalando e aprendendo.
Como todo e qualquer veículo, a bicicleta também exige seus cuidados na condução. Ainda mais nos feriadões, quando Santos se enche de gente de fora, de gente estressadinha que se esquece que não está na capital, que não está trabalhando, que não tem que ter pressa alguma pelo menos nos feriados, ou ainda gente que acha que não merece respeito uma vida humana montada em algo menor que um carro ou um caminhão. Como muitos paulistanos, por exemplo.
No total, morei algumas décadas em São Paulo, capital, e vi muitas coisas relacionadas ao trânsito que não me saem da memória.
Um desses fatos deu-se em um dia de muito sol, de um trânsito até sossegado no centro da cidade, exatamente em frente ao prédio dos Correios: um jovem casal de negros, muito alinhados, muito elegantes mesmo, desceu da calçada para atravessar a rua na faixa certa quando o sinal era para os pedestres. Neste exato momento um carro veio correndo, cheio de rapazes, e freou a poucos centímetros da perna do homem, que deu um pulo para trás. Assim que ele deu o pulo o motorista destrambelhado quis fazer graça e gritou a plenos pulmões:
- Levou susto, macaco?
Aquilo doeu até em mim, que sou branco. Até eu tive vontade de descer do carro e mandar a mão na cara do cretino. Mas não foi preciso. O rapaz negro entregou a pasta “007” à moça, aproximou-se do carro, segurou o imbecil pela camisa, puxou uma parte do corpo dele para fora e passou a encher-lhe a cara de tapas de ambos os lados. À medida em que batia, dizia, em ritmado stacatto:
- Isso é pa-ra vo-cê a-pren-der a res-pei-tar as pes-soas.
Para azar do motorista cretino e preconceituoso, o agressor estava disposto a repetir a frase e os tapas muitas vezes. O sinal abriu, ninguém arrancou, ninguém buzinou, e uma pequena multidão aplaudiu o elegante agressor.
Outra que gostei de presenciar foi quando uma moça deu uma esbarrada no carro de um senhor em plena avenida 23 de Maio -naquela época ainda um tanto quanto desconhecida- parou alguns metros adiante, mas não desceu do carro. O motorista do carro batido, um senhor forte e grande, de cabelos muito brancos, desceu de seu carro, de uma maneira nada agressiva, e aproximou-se do carro dela chegando por trás. Quando chegou à altura do porta-malas do carro da moça ela deu marcha-ré, jogou o homem no chão, e se mandou queimando pneus. Levei um susto danado achando que ela matara o senhor de idade.
Que nada...O homem se levantou, entrou no carro e saímos em disparada atrás dela. Cada um em seu carro, claro. Àquela altura eu me sentia comprometido. Seria testemunha do que viesse a acontecer e daria todo meu apoio ao senhor atropelado.
Passamos “voando baixo” por um longo trecho do centro da cidade e alguns quilômetros depois ele alcançou o carro dela, ultrapassou-o, jogou o carro na frente e freou. A moça, desesperada, tentou levantar o vidro do carro e não conseguiu, não sei porque. O homem de cabelos brancos tirou-a de dentro do carro pela janela, jogou-a como se fosse uma boneca em cima do capô do próprio carro, levantou-lhe a saia e mandou cintadas na bunda dela até cansar-se de bater. Eu apreciava a surra, ria, e o incentivava. Quando ele parou de bater a turma em volta bateu palmas e até chegar de volta ao seu carro o velho justiceiro ganhou muitos tapinhas nas costas. Só faltou distribuir autógrafos.
Para não me alongar muito, o último caso: na rua Alvarenga, perto da USP, fiz uma curva e me deparei com dois carros atravessados na pista. Ao lado de um deles, um Santana branco, um homem gigantesco batia com as duas mãos na capota e xingava o motorista, fechado dentro do carro e ao lado da esposa, de todos os palavrões possíveis e imagináveis. O que recebia as ofensas apenas o olhava com ar indiferente enquanto o carro balançava como se enfrentasse um terremoto violento. Quando o grandalhão, que, sem exagero algum, parecia um bloco imenso de granito, voltou para seu carro, o motorista “pequeno” desceu do dele com uma faca imensa, que de longe dava para ver que era uma “Tramontina” especial para caça, e correu em sua direção. Eu gritei pedindo a ele que não matasse o grandalhão, mas logo vi que não era essa sua intenção. Ele queria, e conseguiu, encher as duas pernas do gigante de pontapés bem dados, desde os calcanhares até as coxas, enquanto o outro gritava que com faca era covardia. Será que ele não via que covarde fora ele, um homem com mais de dois metros de altura e uns cento e oitenta quilos de peso, bancar o valente com um senhor de um metro e setenta e uns setenta e poucos quilos? Um “quase baixinho” da minha altura. As pernas do valentão devem ter ficado de molho por umas duas semanas. Fez por merecer.