Uma voz interior
Loucura ou não, não sei dizer, mas tudo começou com minha avó. Quando eu tinha uns seis anos, ouvi-a aconselhando uma amiga. Dizia que era preciso meditar, ficar em silêncio, para ouvir certa voz interior, que vinha do coração.
Muitas outras vezes eu vi, ela falava sozinha em voz baixa, sorria até. Balançava a cabeça afirmativamente, concordava. Adorava vê-la assim.
Tanto, que descobri ou criei, um amigo imaginário que também falava comigo. Íamos juntos para o colégio, brincávamos, e ele até fazia os temas comigo. Ele ou ela podia ser o que eu quisesse. Era menino quando nós subíamos na goiabeira e menina quando vestíamos as bonecas.
Não sei bem quando meu amigo foi morar em outro lugar, ficou distante. Também não sei precisar o exato momento em que ele voltou a falar comigo. Hoje sei que ele amadureceu muito, me dá conselhos precisos e na hora certa. Nem sempre são palavras, mas são respostas que surgem na forma de um livro, de uma pessoa, um acontecimento cotidiano.
Alter ego ou consciência, espiritualidade, anjo da guarda? Piração?
Sei lá. Estando sob controle é a conta.
E tenho confiança que isso não é privilégio meu. Sei que para outros, isso foge completamente ao controle. O limite entre a sanidade e a loucura pode tornar-se sutil.
Participei de uma oficina de crítica do conto, na CCMQ, com Flávio Ilha. O primeiro conto analisado foi William Wilson do Edgar Allan Poe. O conto é a história de um homem que se sente perseguido por um sujeito de mesmo nome que tenta roubar-lhe a identidade e a vida. O fim é trágico.
O autor denuncia-se, dá pistas de que o conflito é o dele mesmo. Uma luta interna da perversidade com a vontade agir corretamente que segundo ele, estaria em todo ser humano. Os deslizes do narrador são os do escritor, alcoolismo, vício pelo jogo.
No conto, a obsessão em derrotar o duplo chega ao extremo e na ânsia de acabar com o tormento o suicido é a única alternativa.
Porém, matando o homônimo, William Wilson acaba com a própria vida.
Mas estou tranqüila, minha voz interior não esconde nenhuma perversidade, nem compete comigo em nada.
É mais aquela voz que tantas pessoas confessam abertamente. Uma voz sábia, visceral. Uma intuição.
Se você também ouve essa voz, não tenha medo, analise, escute, quem sabe não vem daí uma boa dica.
...O som de alguém que batia levemente a meus umbrais.
"Uma visita", eu me disse, “está batendo a meus umbrais”.
É só isto, e nada mais. ...
(Versos do poema O Corvo de Edgar Allan Poe, tradução de Fernando Pessoa)