Onde moras

O piso, coberto pelos tacos que ainda brilham, torna-se evidência do cuidado maternal naquela estreita passagem. No pequeno corredor que leva aos quartos, há sempre alguma coisa que parece nova. As paredes parecem mais brancas do que costumavam ser, quando as variadas mãos escorregavam, e as brincadeiras de escalada nas duas grandes telas laterais se faziam presentes. Os riscos, quadros e imagens imaculadas – hoje ausentes pela diferença de crença – fazem de cada nova travessia uma aventura permanente na memória.

Acima do portal que leva à cozinha, os pequenos números que, em forma de ciranda, juntam o primeiro e o décimo segundo em perfeita harmonia, transmitem algo incompreensível. Como se buscasse entender, Vozinha espreme os olhos: "Três... e... quatro" – segue o ponteiro grande e anuncia seu itinerário desesperador. O sino da escola, tocado duas horas antes do início da missa, soa como salvação diária para a alma. Pouco depois, o fechar das portas do salão de beleza sinaliza que o Padre já começou a celebração, deixando claro que a caminhada até lá será em vão.

O amanhecer, tardio jamais visto por Vozinha, cria agora um cenário demasiadamente iluminado. Tudo parece recente para aqueles olhos que veem distante: o cinza sem graça da cortina; a tevê com seus botões que se misturam, posta acima do espelho; a cadeira muda na lateral da cama. O grande guarda-roupa de madeira amarelada se mantém o mesmo, apesar das roupas de cama de visita fazerem-no parecer menor a cada dia. A sensação de que alguém pode ligar, marcando de passar algumas noites, ecoa como uma esperança permanente por longos anoiteceres. Ali, no mesmo quarto, no antigo condomínio das camas – símbolo de união em irmandade de um tempo que voou –, hoje exibe, sobre o piso que perde o brilho, apenas um andar raso e viúvo.