Entre Apolo e Dionísio

Nietzsche é um autor perigoso, pois seus escritos e ideias podem ser facilmente desvirtuados para justificar verdadeiros absurdos. Sabe-se, por exemplo, que Hitler era leitor de Nietzsche, e a visão distorcida que ele fez da obra do filósofo o levou a “ejacular” sua visão de mundo de forma violenta e deturpada no livro Mein Kampf. Um exemplo claro de Nietzsche mal compreendido.

 

Sabemos, pela biografia de Nietzsche, que ele era contra os antissemitas, embora admirasse Napoleão – um fato inegável. Seus conceitos de apolíneo e dionisíaco também não escapam do risco de serem desvirtuados. O caminho da vida associado a Apolo está ligado às artes, à erudição, à razão, às formas concretas e aos sonhos. Já o de Dionísio, pelo contrário, remete à embriaguez, à loucura, à insanidade, ao instinto desenfreado e ao sentido da terra. De ambos os modos de vida é possível extrair prazeres, embora sejam diametralmente opostos.

 

O uso de entorpecentes, como a cocaína, está claramente associado ao domínio de Dionísio – à insanidade que provoca, ao descontrole, à falta de saciedade, à busca por um prazer fácil e desmedido. Outro possível desvirtuamento das ideias de Nietzsche é a noção de que castrar determinados instintos perigosos no homem o torna pior, mais fraco. A interrupção abrupta de uma substância que oferece prazer, como a cocaína, pode assemelhar-se a essa ideia de castração.

 

 

Nietzsche, em A Genealogia da Moral, discorre sobre o perigo da “besta loira” que assolava a Europa e como os sacerdotes a controlaram por meio da internalização dos instintos perigosos da fera em forma de castigo e punição, projetados para um plano fora da terra – o além-mundo. Daí surgiu o conceito de pecado e inferno. Contudo, o desvirtuamento das ideias nietzschianas, no caso de uma substância nociva como a cocaína, ignora o fato de que essa droga destrói lentamente o organismo, que é a origem de toda energia vital do ser humano. Assim como a “besta loira” foi controlada de maneira distorcida pela moral religiosa, o uso da cocaína busca uma falsa sensação de liberdade, mas, na verdade, cede a um instinto destrutivo, que, no final, enfraquece o corpo. O corpo abriga tanto a razão quanto a alma, que, na verdade, são expressões dessa energia corporal. Tudo que existe é o corpo e a energia vital que o compõe. Portanto, sendo a droga nociva à energia do corpo, trata-se de algo a ser evitado.

 

Não é minha intenção fazer apologia às drogas neste espaço. Por princípio ético, jamais ofereci ou ofereceria qualquer tipo de substância ilícita a alguém que nunca tenha usado antes. No entanto, as consequências e sensações que essas substâncias provocam no corpo vão além do prazer psíquico; são também físicas. Por exemplo, uma cocaína de alta pureza – chamada vulgarmente de “escama de peixe” ou “osso do diabo” – não só é um estimulante mais poderoso, como também possui um sabor mais agradável. O prazer do uso, nesse caso, não é apenas mental, mas também físico e sensorial.

 

O uso habitual da droga cria uma memória muscular e sensorial de experiências prazerosas que o indivíduo abstêmio precisa aprender a substituir por outras, ou simplesmente viver sem elas – o que não é fácil. Peço desculpas por esses relatos tão detalhados, mas estou utilizando este espaço como uma espécie de partilha, uma forma de terapia. Para mim, é mais fácil escrever do que falar sobre isso em um grupo de desconhecidos ou até mesmo para uma psicóloga.

 

Além disso, acredito ser importante que alguém como eu – que, apesar de estar lidando com problemas de dependência química, ainda não é completamente marginalizado socialmente – fale abertamente sobre o tema. Isso evidencia que a dependência química é um problema que pode atingir qualquer camada social, inclusive indivíduos que fazem parte de uma certa “elite cultural”.

 

Estou entre a cruz e a espada, entre os caminhos oníricos e sensatos do Deus Apolo e a insanidade e insensatez do Deus Dionísio. Sem forças para unir os dois em um grande estilo, devo escolher aquele que privilegia minha saúde e meu estado de ser – o caminho que conduz à serenidade e à vida boa.

Dave Le Dave II
Enviado por Dave Le Dave II em 04/01/2025
Reeditado em 04/01/2025
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