Crônica de um rei frango nú, bronzeado e fatiado.
Era um domingo de setembro, o ar quente ainda indeciso, como uma conversa interrompida. O calor tentava se fixar, mas o inverno o observava de longe, esperando o momento certo de tomar o controle. No centro da mesa, o frango assado repousava como um rei que, mesmo vitorioso, sabia que seu reinado seria breve. Sua pele crocante exalava um aroma tímido, como se quisesse se desculpar pela sua presença, consciente de que sua glória seria efêmera. Ao redor, o apartamento modernista, com móveis que pareciam peças de um museu, se erguia suspenso no ar, um cenário congelado no tempo. A poltrona mole de jacarandá, no canto, parecia um relicário de um design que nunca mais se repetiria. A madeira escura, polida, refletia a luz suave da tarde, o estofado, que apresentava o couro desgastado pelo tempo, oferecia um descanso que já não tinha pressa. O quadro de Burle Marx, que pendia na parede, adicionava alguma cor ao ambiente, um toque de vida que parecia contradizer o peso da sala.
A janela piso-teto à frente da mesa funcionava como os olhos da casa. Através dela, o mundo lá fora se mostrava em suas cores e formas, mas o vidro espesso que a protegia impedia que as tempestades entrassem. Era um olhar sem barreiras, mas também uma proteção contra o caos da vida. O mundo passava, mas ali, dentro, tudo parecia eternamente suspenso, como uma pintura que se recusa a ser completada.
Maria das Dores, com seus noventa anos, se sentava à cabeceira da mesa como uma estátua que, embora tivesse perdido parte da rigidez, ainda mantinha a dignidade dos que resistem. Seu olhar era um campo de batalha entre a presença e a ausência, entre o que restava e o que já havia partido. Ela já não era mais a matriarca, mas, de alguma forma, ainda se mantinha ali, resistindo. Ao seu lado, a cuidadora, com o celular na mão, parecia flutuar em um espaço que não era seu, afastada de uma vida que não a pertencia. Telma, sua filha, tentava preencher o silêncio com palavras vazias, como quem tenta colocar peças que não se encaixam. Falava sobre o que aconteceu na semana, mas suas palavras eram ecos de uma conversa que já não sabia mais o que dizer. O olhar de Maria das Dores, distante, mas ainda firme, fazia Telma sentir a dor de uma perda que não era física, mas emocional. A mãe já não era a mesma, e Telma, à medida que envelhecia, sentia-se uma espectadora de uma história que a ela mesma escapava.
Armando, sempre o comandante da mesa, tentava dar rumo à conversa com a certeza de quem sabe o caminho. Dizia sempre que gostava das coisas "bem ajustadas", uma frase que soava mais como um mantra do que uma explicação. Ele acreditava que a ordem, mesmo que ilusória, era o que dava sentido à vida. Enquanto cortava o frango, cada pedaço da carne parecia ser um pedaço da sua própria existência, uma tentativa de manter controle sobre o que, aos poucos, ia se desfazendo. Cada corte era uma tentativa de marcar seu território, de deixar claro que ele ainda dominava o espaço. Mas, no fundo, ele sabia que o que ele cortava não era apenas o frango, mas as ilusões que ainda mantinha sobre a vida, a família, a casa, o mundo. O que ele tentava ajustar não tinha mais lugar ali.
Zinho, o cunhado, observava tudo em silêncio, como uma árvore no campo, enraizada, mas afastada de qualquer movimento. Sua tatuagem de dragão, incompleta e desbotada, parecia contar a história de alguém que já havia tentado ser algo mais, mas que agora, à medida que envelhecia, via aquele dragão se transformar em algo frágil e distante. Armando, com seu olhar crítico, via o dragão como uma metáfora do que ele mesmo temia: a perda do controle, a dissolução do que se acreditava permanente. Armando, por um momento, imaginava o dragão virando ovo, como se o tempo, com sua força invisível, fosse capaz de transformar tudo que parecia sólido em algo frágil. A pele do dragão se desintegrava, como o próprio conceito de força que Armando ainda tentava manter, e ele se perguntava se Zinho, ao se tatuar, não teria se enganado ao buscar uma força que o tempo logo destruiria.
O silêncio de Zinho, porém, falava mais do que qualquer palavra poderia dizer. Quando Zinho se calava, Armando percebia o vazio que preenchia o espaço. Não havia mais uma linha clara entre o silêncio de Zinho e o próprio vazio que Armando sentia crescer dentro de si. A solidão, a mesma que Armando condenava nos outros, parecia finalmente ter se instalado ali, à mesa, entre os pedaços de frango e os olhares que se esquivavam.
Telma, ainda tentando preencher os espaços vazios com suas palavras, dizia frases que soavam cada vez mais desconexas. O tempo, esse velho amigo, parecia brincar de esconde-esconde, apagando certezas e deixando apenas sombras. O vinho que Armando tomava descia amargo, como se ele soubesse que já não restava mais espaço para o que ele acreditava ser certo. Ele sabia que as coisas não estavam mais “bem ajustadas”, como ele tanto gostava de dizer, mas não sabia onde mais buscar o equilíbrio.
A refeição seguiu com a lentidão de sempre. O frango foi devorado, a farofa também, mas a mesa parecia maior agora, e o mundo lá fora, mais distante. No fim, restaram os espaços vazios, que Armando tentou preencher com o que já não cabia mais. A sensação de que nada mais estava ajustado, como ele dizia, era agora inegável. O problema, ele sabia, não estava nas coisas, mas nos espaços entre elas — os vazios que ele tentava preencher com o que já não se encaixava.