O Roubo que Mudou Minha Vida
Seguindo a onda de confissões que podem gerar dúvidas sobre minha real índole e caráter, decidi relatar o segundo maior arrependimento da minha vida. Meu objetivo é compartilhar toda a verdade com quem amo, presumindo que ela irá ler isto. Não vou dourar os fatos, porque ela merece saber a verdade.
É possível que, quando aquele conhecido dela tentou me localizar através dos meus antigos sócios e eles disseram que não queriam saber mais de mim, esse comportamento resoluto por parte deles tenha despertado sua curiosidade. Aqui, explicarei o motivo.
Com apenas 21 anos, eu trabalhava em uma empresa de certificação de produtos do INMETRO. Em dois anos, atuei certificando brinquedos e artigos escolares, mas fui escalado para um novo escopo: eletrodomésticos. Essa certificação era inédita e desconhecida até pelos meus chefes e pelo próprio INMETRO. Comecei do zero, quando tudo ainda era mato, capinando tudo, desbravando as portarias (as leis que regem as certificações) e as normas técnicas de segurança necessárias. Fiz tudo praticamente sozinho, o que me rendeu o título de especialista em certificação de eletrodomésticos, além de algumas promoções. Para minha idade, eu tinha um bom salário.
Além de ter conhecimento técnico, eu era responsável pelo primeiro contato com os clientes, o que me inseriu na parte comercial, ajudando a vender os serviços da empresa. Isso desenvolveu minhas habilidades de vendedor e me deixou mais desinibido. Participava de feiras, visitava clientes e trocava cartões de visita sozinho, a ponto de ter mais contatos do que a própria área comercial.
Eis que um belo dia tive a ideia de usar todos os meus contatos, junto com alguns amigos que trabalhavam comigo e que eu julgava muito competentes, para montar uma consultoria de certificação de produtos. A ideia deu muito certo. Decidimos batizar a empresa de Yes! Certificações, um nome que eu mesmo sugeri. Escolhi esse nome porque “Yes” representava uma postura afirmativa diante da vida, algo que eu admirava e já conectava com as ideias de Nietzsche, que lia na época.
Além disso, o nome foi inspirado em uma história sobre John Lennon e Yoko Ono. Ouvi que, em uma exposição de arte da Yoko, Lennon viu uma peça que consistia em um binóculo pendurado no teto. Quando ele olhou através do binóculo, no fundo havia uma única palavra: “Yes!”. Isso o impactou profundamente, pois era uma mensagem simples, otimista e positiva em meio ao mundo muitas vezes cínico e negativo. Achei a história fascinante e a ideia de um nome moderno e vibrante me agradou.
Propus o nome para os meus sócios, e todos aceitaram prontamente, embora até hoje eles provavelmente não saibam as influências que me levaram a escolhê-lo.
Os primeiros clientes da empresa vieram dos meus contatos, especialmente no setor de eletrodomésticos. Um dos meus sócios também tinha grande talento, era desenrolado e trouxe outros bons contratos. Em menos de seis meses, tínhamos clientes como Le Biscuit, Carrefour e Full Fit (representante brasileira da Hamilton). Estávamos nos preparando para contratar funcionários, mudar de escritório e já recebíamos um pró-labore maior do que nossos antigos salários.
Mas, como jovens empreendedores tentando sobreviver no Brasil, muitas vezes superamos a burocracia de maneiras pouco éticas. Isso incluía pagar responsáveis por testar produtos reprovados para que os aprovassem. Tudo era feito em espécie, sem deixar rastros. É fácil nos julgar, mas o mais velho de nós, que era eu, tinha apenas 23 anos. Só queríamos sobreviver.
Aos poucos, fomos contaminados pelo ambiente. Como disse Rousseau, “o homem nasce bom”. Mas eu, em especial, me deixei levar pelo egoísmo e pela ganância. Em certo momento, consegui um contato no INMETRO que permitia registrar produtos como certificados, mesmo sem que tivessem sido certificados de fato.
Para entender o contexto: produtos certificados pelo INMETRO passam por uma rigorosa avaliação de fábricas e testes laboratoriais antes de receberem o selo de conformidade. No caso de produtos importados, é necessário apresentar esse certificado para liberar a licença de importação na Receita Federal. Meu contato permitia pular esse processo, registrando produtos diretamente no sistema.
Eu apresentei essa possibilidade aos clientes da Yes!. Oferecia a “solução” por 30 mil reais, enquanto o processo normal custava cerca de 20 mil e levava meses para ser concluído, sem garantia de aprovação. Eu ficava com a maior parte desse valor e repassava o restante ao meu contato. Fiz isso cinco ou seis vezes sem que meus sócios soubessem, mas eles descobriram.
Quando isso aconteceu, o clima na empresa ficou insustentável. Meus sócios ainda me deram a chance de abrir o jogo sobre quanto eu arrecadei e continuar com eles, mas preferi vender minha parte. Achei que poderia montar outro negócio com o dinheiro e continuar fazendo o processo por conta própria. Porém, meu contato no INMETRO sumiu, e meu dinheiro acabou.
Hoje, a Yes! continua existindo, com mais de 10 anos de sucesso, enquanto eu sou apenas um assalariado. Apesar disso, não sinto ressentimento. Nietzsche já alertava que o ressentimento é um grande monstro, porque cristaliza antigos acontecimentos, impede novas ações e paralisa a vida. Comigo, isso não aconteceu. Fico feliz que a empresa que criei ainda exista e prospere.
Essa história pode lançar dúvidas sobre meu caráter, é verdade. Se sou uma pessoa boa ou ruim, deixo para os outros julgarem. Prefiro acreditar que somos frutos de nosso meio, circunstâncias e afecções, onde a razão muitas vezes pouco influencia. Esse é um dos maiores arrependimentos da minha vida, não só pela oportunidade perdida, mas por ter traído amigos que confiavam em mim. Não foi o que minha família me ensinou. Minha mãe e, especialmente, meu irmão, são exemplos de retidão.
Quanto a mim, não gosto de dizer que sou “bom” ou “do bem”. Prefiro falar sobre minha personalidade. Sou uma pessoa calma, de hábitos pacatos, intelectualizada e amante dos esportes. Mas, como essa história e meu histórico de dependência química mostram, também tenho tendências hedonistas. Essas são as duas grandes máculas da minha vida.
Apesar de tudo, acho que sou uma pessoa de bom coração.
Me preocupo com a desigualdade social, a distribuição de renda de forma mais igualitária, o acesso democrático à cultura e a intolerância religiosa. Acredito que todos devem ter o direito de professar seus pensamentos e exercer sua autonomia, desde que isso não constitua crime.
Se fosse uma carta de RPG, talvez me descrevessem como “caotic good”.
Estou relatando essa história com a esperança de que a pessoa que amo me leia e me conheça melhor. Quero que ela saiba que, afinal, minha descrição de anos atrás, naquele aplicativo em que nos conhecemos, era verdadeira.
Continuo procurando o mesmo que ela: o amor. Seja o amor físico, sentimental ou a ternura desinteressada de alguém que encontrou outro alguém para a vida toda e não tem olhos para mais ninguém.